Todo
Poderoso,
de Tom Shadyac
Bruce
Almighty, EUA, 2003
Que de Jim Carrey não se pode esperar muito em termos de coerência
de carreira, todos já deviam estar mais do que cansados de saber.
Afinal, depois de estourar com seu estilo de comédia física
(lá para os idos de 1994), ele já esteve envolvido em algumas
tentativas de atuar seriamente, tanto em filmes de real interesse (como
O Show de Truman e O Mundo de Andy) quanto em calhordices
do tamanho de Cine Majestic. Da mesma forma já retomou sua
veia cômica explorando-a ao máximo (como nos dois filmes
com os irmãos Farrelly ou no estranhíssimo O Pentelho,
de Ben Stiller), ou colocando-a a serviço de bobagens como o Batman
Eternamente de Joel Schumacher. Por isso, é sempre difícil
saber o que veremos na próxima encarnação do ator,
que claramente depende muito do talento e interesse dos diretores com
quem trabalha.
Entra em cena então
o senhor Shadyac acima listado. O nome não deve soar familiar para
muitos, então convém lembrar quem é o moço:
ele estreou em direção também com Carrey no muito
engraçado Ace Ventura. Só que um Farrelly ele não
é: tendo conseguido um sucesso de público com este filme,
o picareta botou as asinhas de fora, largando mão da comédia
mal educada deste primeiro filme por um sentimentalismo dos mais grosseiros
que marcaria seus futuros trabalhos, como O Mistério da Libélula
e, acima de tudo, o indescritível Patch Adams. Se estes
dois filmes servem de aperitivo para este Todo Poderoso, talvez
a melhor comparação seja com o segundo filme que uniu o
diretor a Carrey, em 1997: O Mentiroso. Neste filme, assim como
no atual, temos Carrey basicamente interpretando o mesmo personagem: um
cara "gente boa", mas com sérios problemas de caráter (no
primeiro filme, um mentiroso contumaz, neste aqui um carreirista egoísta),
que sofrerá o pão que o Diabo amassou por alguma reviravolta
meio sobrenatural da trama, e depois sairá da experiência
um autêntico "Homem Bom", com as lições aprendidas
quanto a como ser melhor, para o mundo e para aqueles à sua volta.
Esta descrição
é suficiente para indicar o tom moralista do filme (e, a bem da
verdade, da carreira do cineasta), mas o fato é que nem com este
aviso se pode dizer que estará o espectador completamente preparado,
tal a cara de pau, em especial da meia hora final do filme. Basicamente
Shadyac encarna aquele típico pensamento norte-americano, segundo
o qual uma massa despersonalizada de personagens pode passar pelas maiores
provações desde que seja para a melhoria espiritual de um
indivíduo que está num "mau caminho". No caso deste filme
(e nisso lembramos do abominável À Espera de um Milagre),
some-se ainda um deplorável conteúdo religioso que, como
de hábito, coloca Deus como não só um refém,
mas um artífice divino deste individualismo das "boas intenções".
A coisa toda soa tão
mal (e soar é bem adequado, porque a trilha sonora é especialmente
dolorosa) que é quase difícil se perceber que no meio de
toda esta baboseira há até alguns poucos bons momentos de
comédia, geralmente aqueles em que se deixa o bom mocismo politicamente
correto de lado (em especial a cena do âncora do jornal de TV sendo
"manipulado" por Carrey). As outras eventuais sacadas interessantes (como
a paródia da abertura do Mar Vermelho, ou o nome da "empresa" de
Deus - Omni Presents, ou ainda Deus recebendo preces pelo email) só
fazem ver quantas possíveis boas idéias são jogadas
no lixo pela grotesca ideologia de Shadyac, que, este sim, andava precisando
de uma punição divina dia desses. Todos os que reclamarem
do misticismo de M. Night Shyamalan deviam ser obrigados a ver a carreira
de Shadyac de trás pra frente e da frente pra trás, repetidamente.
Eduardo Valente
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