O Tigre e o Dragão,
de Ang Lee


Crouching Tiger, Hidden Dragon, EUA/China, 2000


Zhang Ziyi e Chow Yun-fat em O Tigre e o Dragão de Ang Lee

Amável hibridismo

Se antes o cinema de Ang Lee interessava unicamente pela incrível imprevisibilidade com que vinha escolhendo os temas de seus filmes (realmente, há algo de se estranhar num chinês de Taiwan fazendo Razão e Sensibilidade, A Tempestade de Gelo e Cavalgada com o Diabo...), depois de O Tigre e o Dragão sua obra se adensa, todo o híbrido cultural que o próprio Ang Lee é sai do off e passa à frente das telas. É adorável como a tradição é subvertida, talvez até inconscientemente, numa tentativa de ocidentalizar o cinema de wuxia pian, ou "capa e espada", tão comum e impossível de exportar como os filmes de King Hu ou Tsui Hark. Acresce a isso uma história bem piegas, mas simpática, de dois casais cujo amor parece impossível. Ao fim do filme, um deles vingará e salvará o amor do outro casal num sacrifício muito comum aos grandes relatos hollywoodianos. Mas o que mais interessa em O Tigre e o Dragão não é nada disso: é a saudável sabedoria de que o cinema é arte visual, de que as soluções visuais são muito mais interessantes do que os achados roteirísticos. Num mundo de gladiadores e hannibals, de filmes onde a intriga já está toda resolvida pré-filme e o diretor é um mero atualizador do roteirista, o novo filme de Ang Lee surge como o avatar de um antigo modo de fazer cinema, que respeita os moldes narrativos mas que sabe responder visualmente aos problemas de criar beleza (pensamos em Hitchcock): o prazer do olho.

Porque em O Tigre e o Dragão, a história importa, mas o mais importante é saber como tornar ela cinema. É uma simples ficção de folhetim, onde um mestre sem motivação em conseguir discípulos tenta abandonar sua espada, para a tristeza de sua companheira de artes marciais (Chow Yun-fat e Michelle Yeoh, penetrantes e, hitchcockianamente, sabendo ser mais maquetes vestidas do que personagens interiorizados). Ao mesmo tempo, uma jovem de alta família veste-se de homem para furtar a espada (Zhang Ziyi); ela guarda uma vida dupla, na qual aprendeu artes marciais com uma antiga lutadora chamada Raposa Jade e envolveu-se amorosamente com um saqueador dos desertos. A partir daí a história toma dois caminhos principais, e duas grandes mensagens humanas: a) é preciso fazer o amor romper as barreiras da tradição; e b) é preciso dar liberdade às mulheres, sob penas de fazê-las infelizes e prejudiciais ao conjunto da sociedade.

O grande motor da trama, mesmo que os protagonistas sejam Chow (Li Mu Bai) e Yeoh (Yu Shu Lien), é a jovem Jen Yu. E a principal jogada do filme é a do discípulo. Jen Yu é discípula de Raposa Jade, uma mulher que teve seu amado assassinado, e esse laço de dor é compartilhado pela menina, pois ela deve, segundo a tradição, casar-se através de um casamente arranjado. Mas, ao mesmo tempo, ela deseja ser discípula de Li Mu Bai, pois sabe que ele é um verdadeiro mestre. Com perspicácia, o filme será a história de uma menina que deixa de ser histérica e ladra para transformar-se em mestra e mulher amada. Com mais perspicácia ainda, ele saberá fazer com que o amor impossível de Li Mu Bai e Yu Shu Lien – ela era noiva de seu melhor amigo, morto – possa se realizar à medida que eles transformam Jen Yu numa heroína e que finalmente podem reuni-la com seu amado, um amor também acreditado como impossível.

Mas isso é apenas parte da história. Porque a verdadeira história de O Tigre e o Dragão é outra, que não acontece na cabeça do espectador que tenta entender a história, mas em seus olhos enquanto observa as lutas tornadas bailes, na beleza dos cenários – todos eles em estúdio, à exceção do interlúdio amoroso do jovem casal –, e acima de tudo nos "vôos" dos personagens enquanto eles se perseguem. Só que essa outra história é impossível contar, porque ela é visual. Mas não custa dizer que ela tem todos os méritos porque abandona o verossímil em nome do poético, aposta na beleza dos vôos e ignora a lei da gravidade, faz profissão de fé na criatividade lúdica em detrimento da lógica um tanto descerebrada dos filmes que Hollywood – à exceção dos nomes habituais (de Palma, Eastwood, Scorsese, Carpenter) – continuamente perpetra. O Tigre e o Dragão pode ser a chance que o cinema criativo tem de mostrar a Hollywood que criatividade não é nenhum negócio da China, e que se uma ficção der asas à criatividade ela pode igualmente faturar muitos zeros no box office. E, independente disso, a chance de poder amar (ou não) uma mistura de O Paciente Inglês com Era Uma Vez na China não deve ser perdida. Quando não, somente pelo charme híbrido que proporciona.

Ruy Gardnier