A Promessa, de Sean Penn
The
Pledge,
EUA, 2001
Quatro elementos dramáticos
determinam o andamento de A Promessa: a aposentadoria de um policial,
o juramento deste personagem à mãe de uma menina assassinada,
o desenho de uma criança usado como pista na investigação
sobre a identidade de um serial killer e um golpe do acaso contra o herói.
Cada um destes pontos determina um tema tratado pelo filme. O diretor
Sean Penn, aqui agindo apenas atrás das câmeras, não
teme essa soma. Assume o risco de esvaziar ou desequilibrar o conjunto
ao evitar o núcleo temático em nome do método acumulativo.
Sua encenação, como já era notável nos filmes
anteriores (Indian Runner, Acerto Final e o episódio
em 11 de Setembro), segue o mesmo rumo. Acumula artifícios
que, paradoxalmente, criam um estilo "low-profile".
Penn esforça-se
para estabelecer uma mise-en-scène sensível, que busca de
forma excessivamente explícita os climas líricos, tentando
extrair das imagens uma significação para além delas.
O esforço para se obter esse efeito, porém, supera em visibilidade
o próprio efeito. O diretor valoriza a comunicação
visual, acima da verbal, e eventualmente escancara a estilização.
Embora assuma a posição do narrador-Deus do cinema clássico,
que é onisciente e organiza o mundo, Sean Penn é um Deus
desmistificador. Faz questão de dar o sentido final apenas para
o espectador, não para os personagens, e quebra a transparência
da narrativa, um dos pilares do cinema clássico, para introduzir
ruídos na fabulação.
Ele não se
limita a contar uma história, com seu estatuto interno, mas também
expõe como conta. Penn faz questão de evidenciar o capricho
dos enquadramentos e do encadeamento deles (nos cortes de primeiros planos
para planos gerais especialmente). Dentro dessa busca por transcendência
estética, o diretor apoia-se na trilha musical, um recurso narrativo
que, embora seja excessivo em algumas passagens, dita a atmosfera down
do filme. Essa é elaborada a partir de uma tentativa de expor a
tristeza e a tragédia com um senso de beleza e solidariedade manifestado
pelo autor em relação a quem sofre. O cineasta reafirma
seu amor cruel pelos tipos de alma machucada.
Seu ponto alto, no
entanto, é muito sutil. Penn dá dimensão humana a
tipos com aparições únicas (Harry Dean Stanton, Vanessa
Redgrave, Mickey Rourke). Eles não precisam falar de si para existir.
Estão vivos com seus pesos nos olhos e nas vozes, atormentados
pelo que lhes corrói o espírito. É uma gente de olhar
cansado e desiludido. Penn observa sem os julgamentos prévios nem
espírito zombeteiro dos muitos diretores que, ao filmar a representação
do homem comum e medíocre das profundezas da América, vêem
apenas o patético e o monstruoso desses seres. Penn enxerga-os
como gente. Parece só um detalhe banal, mas revela muito de um
olhar. O de Penn, sem nenhum paternalismo, é integrador. .
A Promessa e a
Aposentadoria
Jack Nicholson interpreta
Jerry Black, o veterano policial que, horas antes de se aposentar, faz
uma promessa à mãe de uma menina assassinada: prenderá
o assassino. Sem acreditar na solução dada ao caso por um
jovem colega, o protagonista decide investigar por conta própria,
mesmo já tendo pendurado o distintivo policial. Sua missão
é alimentada tanto pelo compromisso com sua palavra como pela necessidade
de se sentir útil para a comunidade. Nas duas razões, luta
contra o tempo. Resgata a enferrujada tradição ética
de se cumprir a palavra dada e resiste ao dever trabalhista de abandonar
seu posto na Polícia.
É um homem,
portanto, fora de seu tempo. Não por acaso as imagens de relógios
são recorrentes. Esse sentido de envelhecimento é salientado
em algumas cenas. A mais expressiva mostra Black olhando suas fotos, nas
quais está com menos idade, enquanto pela janela vê uma velha
de muleta, que amplifica a impressão de mundo em ruínas.
É contra essa condição de defasado que o protagonista
começa a sua jornada épica. Ele quer se perpetuar no palco
em vez de sair de cena ou se adaptar às mudanças do texto.
Tanto a promessa como o trabalho, agora clandestino, lhe dá um
sentido para a vida. Talvez o único.
Esse trabalho consiste
em defender o contrato comunitário, de manutenção
da ordem, por ações de bábaros que ameaçam
o projeto civilizatório. O serial-killer a quem investiga mata
menininhas loiras de olhos azuis, símbolo de pureza à americana,
depois de seduzir a imaginação delas com um discurso fabular,
metáfora do fascínio de um país infantilizado pelas
ficções fantasiosas. Nicholson representa o guardião
de um mundo aterrorizado pelos ataques a seus valores e a sua integridade.
Tema antigo, como o personagem, e ainda atual.
O Desenho
A introdução
na narrativa de um desenho feito por uma criança, usado pelo protagonista
como pista para desvendar a identidade do assassino, aponta para uma nova
direção dramática a ser seguida pelo roteiro. O policial
não acredita que as figuras lúdicas, como todos querem levá-lo
a crer, são apenas expressões do imaginário. Vê
nelas uma revelação do mal a ser combatido. Um simples desenho
lúdico ganha a dimesão da arte. É por meio da representação
que o mal da humanidade é detectado. Não interessa se Sean
Penn, partindo do roteiro do polonês Jerzy Kromolowski, por sua
vez baseado em livro do suiço Friedrich Durrenmatt, pensou nesses
termos. Importa que, dentro da articulação interna de A
Promessa, há essa lógica.
Não apenas.
Ao sustentar a investigação sobre sua interpretação
da representação (da arte), tirando dela uma verdade, o
policial entra em choque com outros pontos de vistas. Em vez de se ater
às evidências, fazendo-as se encaixar em conclusões
a priori, como faz seu jovem colega com um suspeito no início,
Jerry Black sustenta-se em suposições. Ele parte da especulação,
não de certezas, para montar sua lógica. Segue caminho oposto
ao da teologia, que parte de uma verdade para legitimá-la com a
razão. Seu olhar é desautorizado pela objetividade dogmática,
algo que, nas palavras de Espinosa, impede o homem de encontrar a verdade
do livre pensar, daí a impossibilidade, ainda segundo Espinosa,
de uma teologia racional. Penn expõe aqui sua visão da arte,
uma manifestação de quem cria que, para adquirir sentido,
depende do olhar de quem observa. E essa assimilação jamais
é objetiva.
O Acaso
Sendo este também
um filme sobre a afirmação de valores e de perspetivas,
em confronto com valores e perspectivas opostas, o espectador tende a
optar pela legitimação ou não da postura do personagem.
Por se tratar de um ser engulido por sua obsessão e com sinais
claros de desequilíbrio, motivados por sua rejeição
à rejeição imposta a ele pela aposentadoria, Sean
Penn poderia inseminar a dúvida no olhar do espectador para Jerry
Black. Isso talvez ampliasse o alcance do resultado. O diretor, contudo,
dilui tudo. Ele nos conduz a fechar com Black. Não conseguimos
duvidar de sua certeza e questionar se ele não está realmente
delirando. Sabemos que, no final, ele estará certo. Resta nos saber
apenas como provará sua verdade a quem duvida dela.
Não deixa de
haver uma incoerência entre diretor e personagem, pois, ao contrário
de Black, que parte a especulação para chegar à verdade,
Penn parte de uma verdade prévia ("o protagonista está
certo"). Adota o postulado teológico ao ir da certeza para
o processo. Esse procedimento banalizaria a tentativa de injetar complexidade
ao material se o desfecho não tivesse uma ironia e uma crueldade
do autor com seu personagem e com o espectador. Ao mostrar que a certeza
de Black, no fundo, pode não ser comprovada, ele quebra seu sistema
de pensamento, embora comprove a validade do mesmo (para nós).
Somos colocados no cerne da tragédia grega quando sabemos, sem
Black saber, que um acaso impede sua lógica de vir à tona.
Ele leva a rasteira dos deuses e também do autor. Graças
a esse desfecho, onde nenhuma certeza tem certificado de validade, A
Promessa cumpre sua palavra. Não totalmente, mas com vitalidade.
Cleber Eduardo
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