Os
Excêntricos Tenenbaums,
de Wes Anderson
The
Royal Tenenbaums, EUA, 2001
Quando um cineasta, especialmente se ele é jovem e em início
de carreira, faz um filme excepcional que se torna um marco tanto pessoal
quanto do mundo do cinema, ele tem tantos motivos para se preocupar quantos
para comemorar. Porque é inevitável que seu próximo
filme seja medido em relação a este trabalho anterior, muitas
vezes injustamente. Vêm à mente dois exemplos recentes, peculiares
para mostrar o tipo de perigo de que falamos: Quentin Tarantino fez um
primeiro longa que surpreendeu a todos, e depois marcou geração
com o segundo trabalho, Pulp Fiction. Muito se esperava do seu
terceiro filme, e Tarantino fez a peculiar escolha de, transitando no
mesmo universo referencial, trabalhar narrativamente e em chave bastante
diferentes do sucesso anterior. Muito mais sutil, maduro mesmo, Jackie
Brown acabou não satisfazendo público e crítica
em geral, que esperavam mais do mesmo, e ele não ofereceu, vivendo
um mini-ostracismo desde então. Já no caso de Paul Thomas
Anderson, após um primeiro filme recebido com o mesmo carinho no
circuito alternativo, e de um segundo filme que se tornou um marco independente
(Boogie Nights) optou por reforçar as marcas e formatos
narrativos deste, levando-os ao paroxismo, recebendo enorme apoio da crítica
e do público com o bastante insatisfatório Magnólia.
Isso nos traz ao exemplo
de Wes Anderson (cujo trabalho anterior discutimos na seção
de DVD/VHS desta edição 36). Após um filme absolutamente
independente, ele também realizou um segundo filme adorado pela
crítica e o meio cinematográfico (embora menos bem sucedido
com o público), que em termos de objetivos pode ser considerado
inclusive superior aos segundos esforços dos colegas citados acima.
O rumo que ele toma neste seu terceiro trabalho difere dos dois, pois
ele nem suavizou com maturidade o seu estilo nem ampliou-o com força.
O fato é que, estilística e narrativamente falando, neste
terceiro esforço Anderson praticamente copia o seu filme anterior.
Mas, interessantemente, se não se pode dizer que ele melhorou (porque
Rushmore é um filme quase irretocável), ele ao mesmo
tempo não diluiu sua forma. Ainda assim, é com receio que
olhamos para o futuro da sua produção, temendo que o que
possa ser um olhar original se torne um cacoete de estilo vazio. Tomara
que este que é um dos mais promissores novos talentos do cinema
americano não caia nesta cilada.
Certamente ainda não
foi o caso em Os Excêntricos Tenenbaums, e isso acontece
porque ele volta seu arsenal estético para um tema diferente dos
"anos de escola" do filme anterior, lidando com o tantas vezes mal usado
conceito da "família disfuncional". E o segredo de Anderson para
conseguir imprimir vida nova na sua obra e no tema é basicamente
duplo: amar profundamente seus personagens em todas as suas falhas, e
torná-los figuras absolutamente inesperadas o tempo todo. A bem
da verdade, como o título em inglês indica (é o nome
do patriarca da família), há um personagem central aqui
que incorpora isso tudo. Interpretado de forma antológica por Gene
Hackman, Royal Tenenbaum é, basicamente, um fracassado na arte
das relações familiares. Quantos destes não há
no cinema contemporâneo? Só que, ao invés de simplesmente
culpá-lo por todos os traumas dos filhos (e certamente há
muitos), o filme opta por mesclar esta culpa com também muito carinho
pela incapacidade dele, auto-reconhecida, de conseguir fazer algo de melhor.
E ele tenta, do seu jeito, o filme todo. E são estas tentativas
que representam a alma do filme, e que conseguem fazer entender que um
homem só não é o culpado pela vida de ninguém.
Não podia ser tema mais atual.
É verdade que
à exceção de Royal, os outros personagens trabalham
num nível de complexidade muito menor. Alguns (como o de Ben Stiller
ou o de Owen Wilson) chegam a ser figuras bastante bidimensionais, cuja
função narrativa é bem óbvia. Outros (como
o de Bill Murray ou Seymour Cassel) estão apenas criando um contraponto
aos protagonistas. Os únicos dois personagens que conseguem fazer
frente de fato ao de Hackman são os de Gwyneth Paltrow e Luke Wilson,
que têm uma das melhores cenas do filme.
Mas, o que impressiona
é o tratamento que Anderson (e o co-roteirista Owen Wilson que
possui enorme influência nos filmes) sempre dá aos seus personagens,
sejam eles os protagonistas ou estas figuras secundárias. Porque
ele os coloca no limite do absurdo sempre, capazes de diálogos
ou atos completamente despropositados a qualquer momento. Este abandono
da ditadura do psicologismo ajuda a entender o fascínio que emana
de todas as cenas de seus filmes. O espectador nunca sabe o que irá
assistir em seguida. De fato, tudo parece tão estranho e absurdo
em certos momentos que fica a dúvida de como eles conseguem "vender"
estas idéias aos chefes de estúdio. Neste tratamento, e
na relação clara com a tradição social e audiovisual
americana, há algo que lembra muito os irmãoes Coen. Mas
o que torna este clima surreal algo de pungente, como nos Coen, é
a disposição dos atores em defender o universo criado com
enorme entrega e senso do limite supremo entre o cômico e o sério.
Cada cena seria patética se justamente os personagens não
parecessem estar vivendo cada momento intensamente. O espectador não
consegue se desvencilhar deles, de torcer por eles e pela sua adorável
loucura.
Não apenas
os personagens trabalham neste registro, como toda a concepção
audiovisual. Anderson repete o mesmo truque de seus filmes anteriores
ao criar uma enorme confusão de estilos e tempos em sua fotografia,
direção de arte, trilha sonora, dando ao filme a mistura
de anacronismo e modernidade constante. Nunca ficamos completamente confortáveis
vendo seu filme. Embora esta criação de um estilo seja algo
de positivo no que denota de visão de mundo, a repetição
de uma série de artifícios e a enlouquecedora auto-referência
constante (há atores-figurantes, cenas e diálogos tirados
direto de Rushmore) tornam alguns momentos do filme cansativos
e, principalmente, pretensiosamente auto-centrados, ainda que feitos com
a mais alegre das intenções. Fica um pouco preocupante ver
cenas praticamente chupadas do filme anterior, e imaginar-se o registro
de estilo estrangulando outras possibilidades. Qual Tarantino fez, seria
muito saudável ver Anderson insistir nos seus temas, mas buscar
outras possibilidades narrativas e estéticas para eles.
Mas, como se disse
no início, é provavelmente injusto insistir nesta comparação,
pois justamente ela só faz mais sentido para quem tenha visto tanto
o filme anterior. Talvez para um olhar menos direcionado, o que é
referência pura e simples para mim, passe diferente sensação.
E convém sim conseguir passar por cima disso, porque o que Anderson
traz de muito especial é um olhar de mundo, e acima de tudo, uma
paixão e generosidade por seus personagens (e portanto pelo ser
humano) que o cinema em geral, mas especialmente o jovem cinema americano,
precisam retomar desesperadamente.
Eduardo Valente
|
|