A
Teia de Chocolate,
de Claude Chabrol
Merci
pour le chocolat, França/Suiça, 2000
As coisas belas
Há muito Claude
Chabrol não é destes diretores dos quais nos perguntamos:
"O que esperar do próximo filme?" Quem acompanha sua carreira -
mesmo que apenas a partir de trabalhos recentes, como Ciúme
- O Inferno do Amor Possessivo e Negócios à Parte
- sabe que existe no seu cinema uma certa constância na exploração
de determinados temas, assim como a preferência por um trabalho
de direção que transforma em necessidade, a todo e qualquer
custo, a renúncia daquilo que por si só é virtuoso;
um cinema de depuração, de fundamentos seguidos à
risca e de essências, enfim. Menos próximo, portanto, do
verdadeiro objeto de culto e fascínio que lhe é o cinema
de Alfred Hitchcock que do seu também idolatrado Fritz Lang, Chabrol
vem constituindo um conjunto de obra dentro do gênero suspense caracterizado
justamente por uma sobriedade que parece de mais em mais à beira
da extinção.
(Um adendo: apesar
de admirarmos os filmes de John Carpenter, Dario Argento e Brian De Palma,
precisamos reconhecer que são justamente os traços que os
tornam distintos de um cineasta como Chabrol - ou seja, uma predileção
pelo exagero, pelo excesso e, em alguns casos, pelo simplesmente grotesco
- e, especialmente, a maneira com que lidam com estes elementos e acabam
por torná-los fundamentais às suas obras, que fazem de seus
trabalhos instâncias tâo prazerosas e sedutoras de cinema).
Creio que o leitor
poderá perdoar este que vos escreve por não poder prosseguir
com uma análise mais detalhada do cinema de Chabrol, ainda mais
na crítica de seu novo filme ("Absurdo!", pensarão alguns.
Acreditem, eu teria dito a mesma coisa, fosse esta outra ocasião,
outro filme e, devo confessar, outro crítico). A verdade é
que diante deste A Teia de Chocolate o manancial de qualquer fã
do trabalho do cineasta, e creio que também de seus detratores,
se faz pouco importante ou simplesmente nulo diante da sua novidade, vigor
e brilho. Ir ao cinema para ver "o último Chabrol", já comentado
por alguns amigos como sendo grande filme, é atividade das mais
prazerosas para qualquer cinéfilo - ou, como o amigo Eduardo Valente
prefere, seríamos "cinólatras"? Pouco importa. O que de
fato somos diante de A Teia de Chocolate quando o que este filme
faz é nos pôr como infantes diante de um trenzinho elétrico
chamado "cinema" que apenas titio Chabrol conhece por completo e sabe
manejar? O que somos diante da graça, da sinceridade, da imponência,
da beleza e da magnitude de um mero sorriso de Isabelle Huppert? O que
somos diante da completa devoção com a qual Jacques Dutronc
se entrega às suas sessões de piano, o tipo de devoção
que esperaríamos mais de um Van Gogh que de um pianista? O que
somos diante de um simples balançar dos cabelos soltos de Anna
Mouglalis? O que somos senão toda essa vida, essa profusão
de sentimentos e ações que Chabrol teima em capturar a cada
plano, a cada quadro?
Para que o leitor
possa compreender um pouco do entusiasmo e da surpresa exibidos neste
texto, ponha-se na seguinte conjuntura: o lançamento de um faroeste-musical
dirigido por Fritz Lang (assim nos mantemos num caso cinematográfico
semelhante). Sendo Lang um cineasta que se dedicou - e que nesta dedicação
ajudou a popularizar e sedimentar - quase que especificamente a um determinado
grupo de gêneros cinematográficos (o filme de espionagem,
o suspense de caça ao assassino serial, o espetáculo do
aventureiro intrépido), pareceria uma manobra pouco interessante
aceitar um projeto destes. Mas, apesar das infinitas características
que um gênero como o western impõe a qualquer filme
que seja realizado sob seus códigos e regras, eis que surge Rancho
Notorious. O fato de Lang conseguir realizar um filme absolutamente
pessoal no que obviamente foi um trabalho de encomenda, e ainda por cima
num gênero com o qual não era habituado, surpreende e encanta
menos do que a vitalidade, o rigor e a beleza que o diretor confere mesmo
ao menor detalhe, dando ao menos surpreendente objeto cenográfico
de um filme destes um frescor tal que não conseguimos pensar em
muitos outros trabalhos realizados nos limites de um gênero tão
específico como o western comparáveis em invenção
e audácia (não nos esqueçamos que o filme foi realizado
num período em que apareceram algumas das obras-primas do gênero,
tais como Johnny Guitar, Rio Vermelho, Rastros de Ódio,
Winchester '73, Renegando o Meu Sangue etc.).
Voltemos a Chabrol.
Apesar do caso aqui guardar semelhanças com o de Lang no seu faroeste,
ele não chega a ser idêntico, e são justamente as
diferenças expostas que revelam como cada autor opera sua profissão-de-fé.
Se em Rancho Notorious, apesar de uma série de incongruências
(possivelmente provocadas pelo orçamento compromissado de uma produção
de Howard Hughes), testemunhamos o triunfo do gênio de Lang diante
de uma situação que o desafiava por completo (a realização
de um filme que respeitasse uma série de pormenores oriundos de
uma já extensa obra), em A Teia de Chocolate temos um diretor
num ambiente que lhe é familiar (uma família que já
passou e passará por uma situação turbulenta, os
mistérios do personagens que vão pouco a pouco sendo revelados
tanto para nós quanto para eles) desobedecendo boa parte daquilo
que esperaríamos de um de seus filmes. Se a primeira parte do filme
exibe o teor da inevitabilidade e a precisão formal do criador
de M, Moonfleet e Suplício de uma Alma (não
deixando de exibir a criatividade cênica e os movimentos da câmera
do criador de Les Cousins, Les Bonnes Femmes e Mulheres
Diabólicas), a segunda parte exibe o tipo de delírio
romântico que poderíamos esperar apenas do criador de Um
Corpo Que Cai, Intriga Internacional e Janela Indiscreta
(assim como o de Nas Garras do Vício, Betty e Um
Assunto de Mulheres). O que surpreende em A Teia... não
chega nem a ser o desfecho em si, como em outros filmes de Chabrol, mas
muito mais a maneira com que é abordado. Há um tipo de musicalidade
que parece reger todo o filme (e o fato de dois dos protagonistas serem
pianistas apenas acentua tal atmosfera), mas que só ganha força
plena no final, quando Chabrol abdica de toda e qualquer verossimilhança
para nos entregar um momento de cinema tão sublime quanto duradouro:
se num corte vemos Jacques Dutronc segurando Isabelle Huppert pelos braços,
em outro poderíamos jurar que vimos James Stewart segurando Kim
Novak ou Sean Connery fazendo o mesmo com Tippi Hedren.
Congratulações
a Claude Chabrol, portanto, pois são poucos os momentos de cinema
tão eternos como o final de A Teia de Chocolate, quando
após a inevitável conclusão Isabelle Huppert, aos
prantos, se joga num sofá enquanto um impassível Jacques
Dutronc toca ao piano.
Bruno Andrade
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