Sunshine - O Despertar de um Século,
de István Szabó

Sunshine, Hungria/Canadá/Alemanha/Áustria, 2000


Sunshine narra a história da família Sonnenschein, judia que se naturaliza húngara, por três gerações, por todo o século XX, onde esbarram com os três principais estágios da história da Hungria nesse período: monarquia, a Segunda Guerra e o Holocausto, e por fim a experiência socialista. Só que, mais do que a experiência húngara no século passado, Sunshine quer mostrar um pouco dos últimos cem anos da história judia na Europa Central. Istvan Szabó decide então filmar os momentos capitais dessa história, colocando os três protagonistas dessa história como figuras importantes de cada regime (todos interpretados por Ralph Fiennes): o primeiro, um advogado que tem que "hungarizar" seu nome para galgar posições mais fortes em sua carreira e acaba cedendo, por covardia, a uma monarquia corrupta; o segundo, um exímio esgrimista, medalhista olímpico que precisa abdicar de sua fé e tornar-se cristão para poder ter uma carreira no esporte; por fim, o terceiro, que passa a assumir um cargo burocrático no estado socialista e passa a ele próprio fazer devassas anti-semitas nos escalões do governo a propósito de uma "contra-revolução sionista". E por todo filme ronda o espectro "Sunshine", o tônico revigorante que deu a grandeza à família e vai de pouco em pouco sendo esquecido. Ele é a metáfora da tradição e das raízes judaicas, que vão progressivamente se perdendo ao longo do filme.

Só que as boas intenções da obra páram por aí. Szabó, sabe-se lá por quê, preferiu nos contar a história através de homens fortes e autoritários, que rompem tradições familiares por amor e tradições religiosas por fome de poder. Como contraponto, resta a mulher, a companheira, como a instância da moderação, da justa medida. Atendo-se principalmente aos homens na narrativa - as lentes de Szabó parecem pouco se importar com as mulheres no filme, servindo elas como simples joguete -, o diretor de Sunshine acaba recaindo ele mesmo como a instância autoritária de culto da personalidade que ele mesmo insiste em criticar quando fala de stalinismo. No filme, não há tempo para se contar nada que não tenha uma "relevância histórica": a Shoah, a burocracia, a corrupção, o desapego ao judaísmo, tudo levado à tela da maneira mais óbvia e despida de ambigüidades. Szabó não parece querer criar problemas: ele está lá, como professor de liceu, com o claro intuito de contar uma História que é em si mesma límpida, ponto pacífico.

Um claro exemplo do culto da personalidade em que recai Szabó pode ser visto numa cena capital, a cena em que o último Fiennes é orador de um enterro: nessa solenidade, é o momento do filme em que o protagonista e narrador do filme recupera suas raízes judaicas. Como se filma um enterro que é ao mesmo tempo o judaismo se reestruturando? Filmaremos uma comunidade, uma reunião de pessoas que enfim redescobre sua origem. Szabó prefere manter um close absurdo o tempo inteiro no rosto de Fiennes, que diz palavras e realiza mil feições que são muito mais pobres do que um simples plano geral, que daria um sentido de coesão à comunidade. Para o diretor de Sunshine, entretanto, parece que a volta às raízes é questão individual, e não coletiva.

E da mesma forma que no filme podemos ver a história de diversas opressões, o próprio filme se encarrega de uma: filmar uma saga judaica-húngara, onde se passam momentos capitais da memória da Europa do Leste, com atores americanos (Rachel Weisz, Deborah Kara Unger) falando inglês. Ora, se há algo que mais dá identidade a um povo, é sua língua. Já imaginaram ver D. Pedro II interpretado por Sean Connery dirigido por Waltinho Salles garantindo a independência do Brasil em inglês? Sunshine acaba servindo inconscientemente como uma quarta etapa da opressão às minorias: depois de perseguida pelo tradicionalismo, pelo nazismo e pelo stalinismo, os judeus da hungria são perseguidos pelo mercado mundial, e até o que parece uma homenagem a eles se transforma numa velada forma de opressão. Dessa vez capitalista, "branca", regida unicamente pelas leis de mercado. Mas ainda assim opressão.

Ruy Gardnier