Caubóis
do Espaço, de Clint Eastwood
Space Cowboys, EUA, 2000
A Preparação
para a morte
Tommy
Lee Jones e Clint Eastwood em Caubóis do Espaço
de Clint Eastwood
A cinematografia de
Clint Eastwood é povoada por uma particularidade surpreendente,
e que de primeira já o torna em um dos casos mais especiais do
cinema contemporâneo: todos os seus filmes, mesmo com a intriga
mais fútil que seja, acaba se revelando pela maneira como
Eastwood encena e dá um peso inalcançável à
voz dos atores uma rigorosa observação filosófica.
Não precisamos voltar muito no tempo: Poder Absoluto era
um filme sobre a paternidade que se travestia de thriller político,
Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal uma pesquisa sobre as aparências
que se disfarçava de filme de tribunal, mas sobretudo Um Mundo
Perfeito, que mostrava um road movie, um filme de perseguições
quando no fundo era possivelmente o filme mais radicalmente anti-autoridade
feito na década de 90. Caubóis do Espaço não
foge à regra: é um filme de espaço que permite ao
autor colocar ao público mundial (aproveitando-se sem dúvida
de sua fama como ator, pelo modelo de distribuição hollywoodiano
e pelo verniz fortemente comercial de seus filmes, sempre disfarçados
de pequenas obras palatáveis) a séria questão da
velhice e de como enfrentá-la. Mais uma vez o dispositivo-Eastwood
funciona habilmente (mesmo que não à perfeição):
a ficção científica transforma-se em um filme sobre
a morte, em um filme que se constrói sob a égide da pergunta
"como morrer?"
O argumento é
banal: quando um velho satélite russo da época da Guerra
Fria ameaça cair sobre a Terra, a Nasa deve chamar Francis Corvin,
o único homem capaz de ajustar o satélite porque o sistema
de computação sob o qual a peça russa funciona é
incrivelmente semelhante a um sistema criado por Frank (que, nem precisa
dizer, é interpretado por Eastwood), muitos anos atrás.
Caubóis do Espaço é um filme sobre a obsolescência:
tanto o sistema de computação quanto o satélite quanto
o próprio Frank Corvin são considerados pela cultura oficial
como figuras do desperdício ou do desuso ("Todos que sabiam
o código já estão...", diz a assistente da Nasa,
pressentindo que não seria de bom tom dizer o "mortos",
e ao mesmo tempo sabendo que tudo que ela havia dito já tornava
tudo auto-evidente). Se para os outros, os velhos são sempre a
figura da inutilidade social e da falta de vida útil, para eles
sua vida, como não poderia deixar de ser, é bastante importante.
Eles não se impedem de fazer nada por causa da idade: quando a
Nasa descobre que só pode recorrer a Corvin e vai à casa
dele, ele está prestes a fazer amor caloroso com sua esposa na
garagem. As cenas na casa de Corvin são de uma mestria impressionante.
A "palheta" Eastwood-Jack Green, sempre criativa, aqui se permite
inundar a escuridão da casa de Corvin com a luz natural. Única
cena em que realmente a fotografia desempenha um papel psicológico
preponderante no filme (o resto do filme, montado em estúdio, não
repetirá efeitos tão marcantes), ela deixará a forte
impressão de cena mais lírica da primeira parte do filme.
Mas Caubóis
do Espaço não deve ser a aventura de um homem de idade
contra um universo de jovens. Frank Corvin aproveita-se da premência
da situação e só admite cooperar se a Nasa juntar
novamente o time Dédalus, que era a vanguarda espacial há
40 anos, e fazê-lo todo ir na espaçonave. Corvin, Hawk, Tank
e Jerry, há quase meio século, eram os promissores jovens
que deveriam fazer o primeiro vôo à Lua. Por ordem sensacionalista
de seu superior escroque (de longe a parte mais caricatural e desnecessária
do filme), o time Dédalus é desfeito e os futuros astronautas
ocupariam cargos subalternos na recém construída Nasa. Esse
momento, então, há de ser a chance de trazer de volta o
momento de 40 anos de vida. Desde o momento em que Corvin sai em busca
de seus ex-companheiros até o instante em que eles decolam com
a espaçonave, o filme é um tocante registro de como se pode
"voltar à ativa" quarenta anos depois. Todos aqueles
de quem os quatro senhores caubóis se lembram já estão
mortos. "Ele já..." é a frase que mais percorre
esse período, mais com uma certa ironia do que com pesar. Eles
sabem que são vencedores, que não são apenas senhores:
eles são sobreviventes do tempo, porque no fundo esperaram até
esse momento para verem realizado o sonho de juventude. Eles são
todos, entretanto, ativos. Hawk é o piloto audaz, ás da
aviação e pessoa arrojada. Tank é o navegador mulherengo,
que já não tem nem visão (usa óculos) nem
dentes (dentadura), mas continua com precisão de cálculo
aguda. Jerry é o pastor protestante. Todos eles, no entanto, são
senhores com vigor.
Se a intriga principal
se desenvolve na relação velho X novo (os jovens astronautas
oferecem energético aos senhores aviadores, os senhores aviadores
oferecem papinha de neném aos jovens astronautas) ou na relação
útil X obsoleto (um sistema de computação osoleto
que novamente se revela necessário), internamente o filme evolui
na relação entre os dois amigos/inimigos Frank e Hawk: Hawk
é o homem irresponsável e transgressor enquanto Frank é
audaz porém comedido. É a relação, quarenta
anos depois, de duas velhas matronas que sabem até os mínimos
detalhes o que a outra vai fazer.
Esses quatro homens,
eles não são de forma alguma astronautas. O título
é certeiro. Eles são caubóis, velhos caubóis.
Eles não têm a chatíssima operacionalidade-de-bom-aluno
dos jovens inteligentes e bem-formados da Nasa, flores de estufa; eles
tem, isso sim, o savoir-faire da vida real e a experiência da própria
existência como melhor escola. O tempo dos astronautas é
linear, e eles andam em linha reta. O tempo para os caubóis do
espaço, senhores que perceberam que a linha reta no fundo não
leva a lugar nenhum, é um cavalo que se deve montar, é uma
onda que se deve surfar. Eles sabem que o morte está à espera,
e que logo não adianta muito um plano prévio. Enquanto os
jovens vivem no mundo do procedimento, os caubóis do espaço
vivem no mundo da execução.
Mas não nos
enganemos. Caubóis do Espaço é, no fundo,
uma preparação para a morte. Eles têm uma chance,
quarenta anos depois, para realizar o sonho da vida e aprender a morrer.
Quando, ao final do filme, é preciso realizar uma decisão
extrema, fatal, Hawk encarrega-se do fardo ele havia descoberto
há pouco que estava com um câncer fatal e o que ele
diz a Frank Corvin é sintomático: "Eu consegui. Dessa
vez eu te ganhei". Hawk, em sua decisão de dispor de sua vida,
escolhe a hora de sua morte, aprende a morrer. Ele deverá levar
explosivos letais à Lua para salvar a Terra, mas isso lhe irá
custar a vida. E custa. Quando os caubóis voltam num vôo
atribulado ao qual é dado 0% de chances de sucesso , a câmara
persiste por cinco, dez longos segundos perscrutando, em uma luminosidade
magnífica, os corpos daqueles três senhores sobreviventes,
aventureiros do espaço. Eles sabem que não foi só
Hawk que morreu. Ao realizarem sua vida no espaço, todos experimentaram
ser Hawk. Todos fizeram sua preparação. Não é
à toa que, quando novamente reunido com sua esposa, Frank observa
com ela a Lua. Teria Hawk conseguido? O plano seguinte, o último
plano do filme, resolve nos contar: ao som de "Fly Me To The Moon"
com Count Basie e Frank Sinatra, a câmara faz um travelling da Terra
até a Lua, e da superfície da Lua até um pontinho
que vai crescendo até podermos ver o ferro-velho da Guerra Fria
calmamente pousado na Lua; escondido atrás dele, um corpo está
calmamente disposto, preso aos explosivos. A câmara vai lentamente
se colocando de frente ao capacete, que não revela um rosto, mas
apenas um reflexo preto. A câmara termina por, sempre no mesmo travelling,
engolir o preto do capacete e entrar os créditos, justamente quando
na música a orquestra do Conde Basie quebra tudo. Hawk conseguiu
realizar sua missão, mas isso acaba tornando-se menos importante.
Importante foi que Hawk realizou seu percurso existencial, teve o momento
de dispor de sua vida dizendo "sim" a toda adversidade. O preto
do capacete é incapaz de esconder: Hawk morreu rindo.
Ruy Gardnier
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