Solaris,
de Steven Soderbergh
Solaris, EUA, 2002
Soderbergh parece um
desses diretores megalomaníacos, sempre procurando reconhecimento e demonstrando
agilidade, fazendo todo tipo de produção, se debruçando sobre os mais
variados estilos. Entusiasta do cinema que faz, o americano, adota
completamente a sua cartilha como receita e vincula a ela as suas marcas
pessoais. Como diretor gosta de não se prender a um gênero ou tema, sempre
nos surpreendendo com sua próxima escolha. Quando se trata de trabalhar com
liberdade criativa, não esquece nunca de incluir evoluções estéticas tão pouco transgressoras quanto maior
a sua vontade de aparentar tal transgressão. Fazem parte do seu jogo para se
tornar reconhecido como o homem versátil da indústria, ou autor sem amarras,
obras completamente díspares que passam pela acomodação temática de Erin
Brockovich, a pseudo-experimentação fotográfica de Traffic ou o
autoproclamado desapego ao cinema de Full Frontal.
Filmar Solaris
seria então apenas mais um modo de se aprofundar nesse caminho difícil de
prever. Poderia ser também uma provocação de um soldado do cinemão que acha
que toda e qualquer obra só ganhará a sua versão definitiva quando for
adaptada segundo as regras dos grandes estúdios americanos. Soderbergh
certamente quis ficar com a última palavra ao refilmar esse clássico da
literatura de ficção científica, já brilhantemente adaptada por Tarkovsky em
1972. Um misto de ousadia e arrogância envolvem então, desde o começo, essa
produção provocando, logo de saída, antipatia nos espectadores que conhecem e
gostam do filme russo.
A primeira reação, já que
está descartada a possibilidade de não haver comparação entre os filmes, é
taxar erroneamente o pobre Soderbergh como vilão. E nesse caso, somente um
radical inconseqüente não poderá admitir que o novo Solaris é muito
mais agradável à visão. Relembrando o antigo filme russo, sua carência de
recursos para a construção da realidade ficcional, sem colocar em questão sua
genialidade como obra cinematográfica, fica evidente a vantagem que esse
nosso século XXI leva quando se trata de disponibilizar tecnologias para
criação de efeitos visuais. O resultado é um Solaris muito bonito,
realista, convincente. A estação espacial é infinitamente mais palpável e o
planeta que dá o nome ao filme mais envolvente. Até para quem não viu o filme
de 1972 esse novo Solaris causa fascinação com seus cenários que
produzem um ambiente inexistente mas facilmente reconhecível como algo
humano, solitário e afastado.
O grande mistério de
Solaris, o que provoca a ida do Dr. Chris Kelvin à estação espacial que está
em sua órbita, é a origem da aventura. A busca por respostas implica no levantamento
de várias questões básicas referentes ao que vem a ser a vida e o ser humano.
Pontos centrais no filme de Tarkovsky, não esquecidos totalmente nessa nova
versão. Soderbergh opta por focar a trama na história de amor entre seu herói
e sua mulher, morta antes deste ser enviado em sua missão. Graças a essa
escolha o filme ganha outros contornos, permitindo ao seu diretor trabalhar
os elementos que realmente o interessam e da maneira que mais gosta. Talvez
seja aí que Soderbergh tenha acertado. São os flash-backs da relação amorosa,
misturados aos momentos de convívio entre os tripulantes dentro da estação
espacial que constroem uma alternância espaço-temporal que concede a
Soderbergh a oportunidade de utilizar suas técnicas de manipular a realidade
através da fotografia, de câmeras mexidas, de som ambiente. Ao contrário do
que acontece em Traffic, onde a fotografia impõe a mudança de
significado do espaço de forma arbitrária, em Solaris ela está
perfeitamente integrada a tais mudanças. Some o choque gratuito provocado
pela variação de luz e tonalidades para em seu lugar se instalar a harmonia
que se fundamenta na transparência da linguagem.
Ajudado também por uma
música que se sobrepõe aos acontecimentos, surgindo com sutileza para aos
poucos assumir o controle da situação, Soderbergh vai conseguindo trabalhar
seus maneirismos de diretor, sem fazer deles o seu principal objetivo. Solaris
é uma mostra de que ele está conseguindo domesticar essas manias. Um
importante passo para alguém que fazia uso aparentemente inconseqüente de
recursos tão carregados de significação. Vai ver Soderbergh está aprendendo
alguma coisa. O seu processo de amadurecimento e de solidificação de um
estilo pode percorrer um caminho tortuoso e cheio de desvios onde o que mais
intriga é descobrir o que Full Frontal está fazendo depois de Onze
Homens e um Segredo. Soderbergh chegou até aqui e nem Deus sabe o que
pode vir depois.
João Mors Cabral.
|
|