A
Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça,
de Tim Burton
Sleepy Hollow, EUA, 1999
Johnny
Depp, Christina Ricci e Mark Pickering em Sleepy
Hollow
De quando em quando, o velho
e carcomido cinemão americano ainda nos brinda com uma obra
admirável. Desta vez a gratíssima surpresa chama-se Sleepy
Hollow (1999), último filme de Tim Burton, em cartaz no Rio
de Janeiro. Urdido pelo magnífico prestidigitador de artifícios
visuais que Burton sempre foi, Sleepy Hollow resgata uma linhagem
cinematográfica pouco freqüentada nas últimas décadas:
o verdadeiro cinema fantástico, na melhor tradição
de milagres feéricos como La Chute de la Maison Usher (1924),
de Jean Epstein, La Belle et la Bête (1946), de Jean Cocteau,
ou The Innocents (1961), de Jack Clayton; e já não
era sem tempo, pois 15 longos anos nos separavam do último exemplar
que tivemos deste nobre gênero da Sétima Arte, o inglês
The Company of Wolves, de Neil Jordan. A exemplo de seus ilustres
antecessores (notadamente Epstein e Clayton), Burton, que muitas vezes
malbarata seus dotes de ilusionista em roteiros medíocres, desta
vez pode contar com um material dramático de primeira linha, a
célebre novela The Legend of Sleepy Hollow (1819), obra-prima
do escritor norte-americano Washington Irving.
O filme é, sobretudo,
uma orgia visual estupefaciente, um inebriante bailado de deslumbrantes
tableaux vivants, que harmonicamente fluem da paleta de Tim Burton
e de seu fotógrafo Emmanuel Lubezki, ambos convertidos em pintores
de pesadelos vivos. Nas passagens tenebrosas e sombrias, sentimos o inequívoco
eco do atroz universo gótico de Mathias Grunewald e Pieter Brueghel,
das litanias flamejantes de Hieronymus Bosch, dos fogos-fátuos
oscilantes de Henry Fuseli e Caspar David Friedrich, dos espectros ominosos
de Gustave Moreau; nos interlúdios líricos e serenos, vemos
entrar em movimento o êxtase solar das névoas de William
Turner, o sonho idílico das telas de Sir Thomas Gainsborough. Deve
ser enaltecida a mestria com que Burton conseguiu manejar esse acervo
de epifanias pictóricas sem prejuízo para o ritmo frenético
de sua narrativa. Sleepy Hollow é, de fato, um filme
de ação incessante, de sobressaltos contínuos e faiscantes.
Mas reparem: não se trata, de modo algum, do tipo de ação
dramática que encontramos habitualmente no lixo radioativo emitido
por Hollywood, onde o compasso desvairado das imagens exerce um efeito
paralisante sobre o entendimento do público. Na fita de Tim Burton,
o movimento espasmódico, ao contrário, é um veículo
surreal que descortina perspectivas insólitas e fascinantes para
o espectador, que encontra na tapeçaria onírica de Sleepy
Hollow um véu diáfano e etéreo entre o
que contempla e a "realidade" palpável. Os cenários
do filme parecem atormentados por uma inefável discordância
interior, tensão que conduz à misteriosa animação
do inorgânico aspirada pelos românticos e expressionistas
alemães. A energia cinética presente neste inorgânico,
que murmura gritos silenciosos, movendo-se numa dimensão insólita
entre o delírio e o assombro, no estado de animação
suspensa em que se encontram os objetos, é o caminho para atingir
a essência de um absoluto que independe do estabelecimento
de quaisquer relações transitórias.
Outro ponto a ser ressaltado
é a extrema felicidade de Burton na escolha de seu elenco. O casal
de protagonistas (Johnny Depp e Christina Ricci) está excelente.
Depp, emprestando seu charme gauche e habitual nonchalance
ao detetitve Ichabod Crane, confere uma feição irônica
a seu personagem, ao mesmo tempo em que consegue expressar o cárater
perplexo e sensível do Crane original de Washington Irving. Cristina
Ricci, sempre cativante em sua beleza frágil e singular, interpreta
a donzela gótica Katrina Van Tassel. Evanescente e sensual,
inocente e enigmática, Ricci faz de Katrina uma heroína
romântica digna dos mais belos devaneios femininos de Edgar Allan
Poe e Villiers de L’Isle-Adam. Os coadjuvantes estão igualmente
fabulosos: Ian McDiarmid (Doutor Lancaster), Michael Gambon (Baltus Van
Tassel), Richard Griffiths (Juiz Samuel Philipse), Jeffrey Jones (Reverendo
Steenwyck) e Michael Gough (Tabelião Hardenbrook) formam uma galeria
de tipos que poderia figurar nos melhores relatos de E.T.A Hoffmann. Ainda
dentre os coadjuvantes, destaque especial para a bonita Miranda Richardson,
que compõe uma sinistra e requintada Lady Van Tassel, e, obviamente,
para Christopher Walken, esplêndido como o aterrador Cavaleiro sem
Cabeça. Lembremos também da simpática homenagem que
Tim Burton presta a um de seus ídolos de infância, o lendário
ator inglês Christopher Lee, que faz uma ponta como o Burgomestre
de Nova York.
Sleepy Hollow é
um filme que merece ser visto, revisto e conservado para noites de brumas
imprecisas e emanações espectrais. Pois, afinal de contas,
quantos anos mais teremos de esperar por outro filho da augusta estirpe
das fantasias atmosféricas e elegantes?
Alfredo Rubinato
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