O
Amor é Cego,
de Peter e Bobby Farrelly
Shallow
hal, EUA, 2001
A carreira de Peter e Bobby Farrelly vem sendo até aqui cercada
de desentendidos. O Amor é Cego (talvez o pior titulo nacional
desde que Yi Yi se tornou As Coisas Simples da Vida) parece
ter sido desenvolvido para resolver a maioria deles, até mesmo
por ser o filme onde o projeto de cinema dos irmãos seja exposto
de forma mais direta. Apesar disso, não chega a ser surpresa que
o filme tenha gerado alguns outros tantos mal entendidos (o título
nacional é um bom exemplo).
O constrangimento
e os mal-entendidos são centrais para a proposta dos Farrellys,
e a dupla parece se esforçar para confundir o público tanto
quanto seus personagens. Esta atitude acaba levando a grande mídia
a conclusões precipitadas sobre o mau gosto e a pobreza deste cinema,
que, se visto sem preconceitos, é bem mais complicado e interessante
do que aparenta. Confesso que quando assisti Debi & Loíde
pela primeira vez há uns 6 anos, minha reação não
foi muito diferente da grande maioria dos críticos dos diretores.
Revendo algumas cenas dele recentemente, após ter assistido aos
filmes posteriores e com uma perspectiva diferente da que tinha à
época, quase tudo que me parecera mal realizado e pobre se tornou
engraçado e criativo.
Todos os filmes dos
Farrelly partem de um princípio similar: um homem imaturo e com
complexo de inferioridade passa por uma série de mal entendidos
para conquistar uma mulher que é sempre idealizada, sendo que esta
conquista só será possível através de um processo
de amadurecimento no qual o protagonista termina por conquistar seu lugar
no mundo (em Debi & Loíde o processo não se completa
e Débi acaba terminando o filme sozinho). As mulheres além
de idealizadas são as únicas personagens completamente sãs
e também aqueles que melhor enxergam dentro da teia de mal entendidos
construída pelos diretores. Como pano de fundo há sempre
uma série de personagens esquisitos, deficientes e/ou excluídos.
O interessante em
O Amor é Cego é que esta estrutura é ligeiramente
retrabalhada de forma a tornar este processo não apenas mais claro
como ainda mais complexo. Hal (Jack Black) aos 9 anos recebe o conselho
do pai moribundo de nunca se satisfazer com mulheres menos que perfeitas.
Ele cresce e junto com seu amigo Maurício (Jason Alexander) passa
as noites a caça das mais belas mulheres, apesar de ambos não
terem nenhum atributo físico especial. Até o dia em que
Hal fica preso num elevador junto há um guru de auto ajuda que
lhe hipnotiza para que veja apenas a "beleza interior das pessoas".
Por conta disso, ele acaba se apaixonando por Rosemary (Gwyneth Paltrow),
na verdade uma mulher de 130 kg, que também é a filha do
seu chefe.
Hal é imaturo
mas varia entre a insegurança e o excesso de confiança,
que por vezes o leva a ferir as pessoas entorno dele. A fixação
de Hal em julgar as mulheres de acordo ao seu alto padrão de beleza
é acrescida como complicador, ela não apenas adiciona a
sua imaturidade, como passa a ser o seu grande obstáculo. Compreender
que o que o atrai em Rosemary é mais a personalidade dela do que
sua aparência física é a questão que os autores
colocam diante dele. A personagem feminina passa por transformações
ainda mais interessantes, Rosemary continua idealizada mas ao mesmo tempo
ela é retirada da posição privilegiada das heroínas
dos filmes anteriores, e mais importante é posta como uma pessoa
insegura que se por um lado parece satisfeita com sua aparência,
por outro se sente deslocada na presença de uma pessoa, Hal, que
realmente a vê como desejável. Adicione-se Mauricio que também
passa por um processo semelhante, e temos três pessoas que crescem
ao longo do filme sendo que uma parece comentar a outra.
O humor peculiar dos
Farrelly segue o mesmo burlesco excessivo e de "mau gosto" que
parece sempre colocar em questão a posição do espectador
diante do que vê na tela, mas com uma diferença vital. Enquanto
toda a industria cinematográfica americana parece ter decidido
seguir a fórmula dos diretores (mesmo que sem se dar conta do que
exatamente faz o humor deles funcionar tão bem), estes fazem o
inverso. O Amor é Cego é narrado como uma comédia
romântica comum onde de tempo em tempo uma piada típica dos
diretores aparece, e se um personagem que tem uma deficiência que
o obriga a andar de quatro já é incômodo nos outros
filmes dos irmãos, ele se torna ainda mais quando inserido num
filme aparentemente mais convencional como este. O que ajuda a explicar
que mesmo contendo um número bem menor de piadas com minorias e
deficientes e deixando bem clara a simpatia dos diretores pelos mesmos
este foi o trabalho da dupla a ter sido mais criticado como preconceituoso
nos EUA.
Isto tudo não
faria de O Amor é Cego mais do que uma obra conceitual interessante
não fosse a habilidade dos Farrelly em levar tudo à tela.
Da construção sempre criativa das gags -- especialmente
na forma como eles transformam o que seria, fora de contexto, piadas com
gordos em piadas com a percepção de Hal e Maurício
(este sendo o personagem mais grotesco do filme, só conquistando
o espectador quando assume a sua própria deficiência) --
até a injeção de vitalidade mesmo nos planos mais
óbvios (como Hal sentado sozinho num parque a contemplar a sua
situação). A melhor das soluções dos Farrelly
é na relação entre subjetivo e o objetivo nas cenas
entre Hal e Rosemary. Filmadas sempre do ponto de vista de Hal com ocasionais
planos do ponto de vista de outros personagens mostrando a forma objetiva
como o resto do mundo enxerga Rosemary. Isto seria óbvio, mas os
irmãos filmam estes outros planos enfatizando a artificialidade
da maquiagem que deixa Gwyneth Paltrow gorda, de forma a fazer o público
ver esta realidade como apenas uma ilusão cinematográfica.
É só quando Hal é obrigado a se confrontar com Rosemary
e aceitar o seu físico é que ela passa ser filmada de forma
natural já que sua aparência deixa de ser uma barreira tanto
para Hal quanto para o público. Tudo isto somado acaba tornando
O Amor é Cego uma bem vinda adição de inteligência,
criatividade e sensibilidade na cada vez mais capenga comédia americana.
Filipe Furtado
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