Shaft,
de John Singleton


Shaft, EUA, 2000

Há muita coisa errada com Shaft. Mas nada mais errado do que o filme ser dirigido pelo mesmo homem que apresentou no início dos anos 90 Boyz ‘n the hood. O que aconteceu com John Singleton ao longo de uma década é o auge de um processo muito complicado que simboliza o que aconteceu com os negros e sua imagem perante o grande público americano em 10 anos.

Em 1990, pouquíssimos eram os diretores negros atuando nos EUA. Mais importante, porém, era o fato de que os negros não eram reconhecidos como público-alvo pelos executivos dos estúdios. Spike Lee deu os primeiros sinais com seu Faça a Coisa Certa em 1989, e Boyz ‘n the Hood confirmou isso, com Singleton indicado ao Oscar de direção em 1991. Uma fornada de outros filmes viriam em seguida, e o que mais importa em Hollywood: havia um mercado para filmes com negros como personagens principais. Ao longo da década, vários diretores foram surgindo (para citar os mais interessantes, Boaz Yakin, os irmãos Hughes, Carl Franklin) e um número ainda maior de estrelas negras (Denzel Washington, Samuel L. Jackson, Laurence Fishburne, Halle Berry), sem falar nos comediantes (Martin Lawrence, Chris Rock, Damon Wayans, a volta de Eddie Murphy), que foram se firmando como bancáveis, seja nos filmes da "comunidade", seja (e isso é importantíssimo de perceber) para o grande público de classe média. Em 2000, bastaria citar o sucesso de Todo Mundo em Pânico como principal exemplo.

Este, porém, não foi um fenômeno isolado. Veio atrelado a áreas importantíssimas do imaginário americano, tão importantes quanto o cinema. Os esportes de massa (basquete, beisebol e futebol americano principalmente) experimentaram o "boom" de audiência televisiva e de marketing que transformou em verdadeiros deuses os já predominantemente negros atletas. A música, com o auxílio vital da MTV, viu uma década de explosão do fenômeno do rap e do hip hop, além do chamado rhythm ´n blues, todos com grande maioria de artistas negros. Em suma, de repente, passou a ser "hip", ou mais diretamente, "cool" gostar da cultura negra. Ela passa a ser consumida abertamente, de forma nunca vista nos EUA. É claro que isso é muito positivo, se pensarmos num país que tinha estados segregacionistas fortes ainda nos anos 60 e que passou ainda nos anos 90 pelo caso Rodney King em Los Angeles. No entanto, por outro lado, a verdadeira transformação dos EUA no grande mercado que lança tendências mundiais e vende loucamente, transforma quase tudo que podia haver de revolucionário neste movimento em cifras e estratégias de mercado.

Assim, damos a volta completa (muito rápida é verdade, este assunto provavelmente vale livros e livros de discussão e ainda precisa de tempo para se sedimentar e ser entendido), e estamos no início do texto, tentando entender o que houve com John Singleton. Parece promissor, de início: o diretor de um dos filmes iniciais disso tudo, que possuía um forte discurso contestatório e de denúncia social (afinal, achar que ser negro é "cool" está longe de acabar com o racismo ou a injustiça social para a maioria) pega um ícone dos tempos quando ser negro era revolucionário, e o adapta para os anos 90. As possibilidades são imensas. Shaft, o personagem, era a encarnação do "cool". Só que em 1971 ser negro e "black power" não era moda como hoje. Portanto, sua malandragem, sua atração irresistível com as mulheres, tudo isso era algo de altamente ofensivo ao "status quo". Era o herói americano típico virado ao contrário. Seu sucesso representou uma primeira abertura de portas, mas também levou ao gênero do "blaxpoitation", fenômeno na época criticado pela própria comunidade que se via como "macacos de circo", mas que hoje em dia já é visto com os olhos de uma das representações mais vibrantes do chamado orgulho negro.

Em suma, tudo indicava que podia ser um filmaço. Mas, infelizmente, os tempos são outros. Hoje é o ano 2000. Vender é o que importa. Ser "cool" já não é mais revolucionário, é careta. Parece muito o processo desvirtuado também do uso de drogas dos anos 60 até hoje. O "cool" hoje busca simplesmente atrair e vender. Ingressos, roupas, vídeos, videogames. E Shaft virou apenas mais um boneco mecânico de ação. Que, por acaso, é negro, porque esta é a moda hoje. Ele usa Armani, tem um cavanhaque esperto, e é fotografado como se passeasse num comercial de TV, o tempo todo.

Há várias perguntas que vêm do filme. Por exemplo: porque usar este personagem? O público adolescente de hoje não faz idéia quem foi Shaft, e se ele se chamasse Stark ou algo assim faria tanta diferença? Não parece. Outra pergunta: porque fazer o filme sobre um tema que parece ser o racismo (pelo menos o início indica e até parece interessante), se vai transformá-lo logo depois em apenas mais um filme cujo verdadeiro tema é a adoração do público por tiroteios, sangue, sadismo e velocidade? Chega a ser desrespeitoso levantar um tema tão importante como desculpa para ficar batendo carros e matando pessoas.

O fato é que o resultado é atingido: Shaft é um cara "cool". Tem respostas inteligentíssimas, não se rende nem a patrões nem a inimigos, se veste muito bem, mata a torto e a direito sem ser ameaçado uma só vez. Samuel L. Jackson é a encarnação do "cool", então sua atuação é perfeita, simplesmente por ser ele mesmo. E Shaft não nos faz perceber qualquer diferença entre ele e Rambo, ou ele e os personagens de um Schwarzenegger. Na verdade, o número de mortes deste filme chega a ser maior, impressionante mesmo. Há inúmeras cenas completamente gratuitas de violência fortíssima. Parece em alguns momentos ser brincadeira o número de cabeças explodindo, sátira mesmo. E Shaft mata tantos quantos um Charles Bronson em Desejo de Matar, ou um Dirty Harry. Sua ideologia é a mesma: precisamos tomar a justiça nas nossas mãos, pois de resto ela não funciona (o final deste filme é de assustar!).

Só impressiona mais do que o número de cabeças explodindo, a falta de sexo do filme. Pois é, John Shaft continua o mesmo malandrão, e até percebemos que ele se dá bem com as damas. Mas nós não podemos sequer pensar em ver uma cena de sexo, afinal estamos nos anos 90. Matar pode, trepar é ruim para a moral.

Singleton filma tudo muito bem, aprendeu todas as lições de Hollywood. Sua cãmera se movimenta com fluidez, o roteiro apresenta bem vilões e mocinhos, não há dúvidas quanto a isso. Os personagens não possuem qualquer função dramática que não seja morrer ou ser maneiro. A montagem usa uns "wipes" super da moda para dar aquele tom "esperto". Singleton faz tudo certinho, como um Michael Bay "de cor". Nem parece o diretor cheio de tesão que fez Boyz ´n the Hood.

Em suma, Shaft é um autêntico herói nacional do ano 2000. Shaft é um perfeito sucesso do ano 2000. Que pena. Quem imaginaria que o dia em que ser negro fosse ser moda pudesse ser também o dia que provasse que a sociedade deu três passos para frente, mas pelo menos dois para trás?

Eduardo Valente