O Sexto Dia,
de Roger Spottiswoode


The Sixth Day, EUA, 2000

O cinema americano sempre possui uma capacidade notável de refletir sobre os temas mais atuais, ao longo de toda sua história. Este foi, sem dúvida, um dos fatores que mais garantiu a sua permanência e universalidade, e representa uma razão a mais pela qual estudar o cinema americano é estudar a história do século XX. Nenhum outro país conseguiu carregar para seus filmes, desde os mais comerciais até os mais engajados, a urgência temática que os americanos tiveram. Para a crítica isso tem especial importância, porque nenhum filme americano pode ser considerado "desimportante", apenas por ser comercial ou um filme de ação. O Sexto Dia, no geral, foi um filme desconsiderado pela crítica brasileira, que parece pensar que criticar é algo que só alguns filmes merecem, o que é a mais reacionária das posições. Isso por duas razões, principalmente: primeiro porque um filme não é apenas a soma de fatores frios e calculistas (fotografia+montagem+som, etc), mas um produto que ultrapassa em muito o que se dá apenas na tela, e por isso todo filme deve ser visto como fenômeno; e em segundo lugar porque nem sempre o que não gostamos não nos ensina até mais do que o que gostamos. Por isso, parece muito sério que, em especial o interessante filme de Spottiswoode não tenha recebido nenhuma cobertura mais profunda.

Porque em especial este filme? Bem, para começar porque ele toca num dos temas mais atuais da ciência moderna, a questão da clonagem e do Projeto Genoma. Este tema é um dos "grandes temas" científicos, no sentido em que ultrapassa questões puramente técnicas e adquire inegáveis conotações éticas e filosóficas. Por isso, já é absolutamente importante entender como Hollywood toma esta primeira posição sobre o tema. Além disso, é vital perceber no filme de Spottiswoode o reconhecimento da importância do tema, o qual é tratado com imenso cuidado e até um certo temor. Por último porque as formas como o filme se trai ao abordar o tema são exemplares do pensamento do cinema de entretenimento americano, e sua contradição precisa ser explicitada, discutida, analisada, pois os resultados são muito influentes em todo o mundo. Ou alguém duvida que a forma como o filme de Schwarzenegger toca no tema da clonagem vai influenciar a opinião de muito mais pessoas que qualquer artigo de revista?

O filme coloca esta urgência já no crédito inicial de localização no tempo: "Futuro bem próximo (mais do que você imagina)". Na introdução dos personagens, ele vai apresentando uma série de novidades tecnológicas, como a casa que conversa com o morador, as bonecas de brinquedo quase vivas (muito sinistras), e acima de tudo os "Re-Pets", ou seja, clones dos animais de estimação mortos. É em torno dos Re-Pets que começa a questão filosófica do filme: e certo clonar um ser vivo e torná-lo eterno? Ficamos sabendo então que o governo proibiu isto no caso humano, mas não dos animais. É óbvio que um vilão (no caso não um cientista maluco, e sim um magnata da informática) se dedica à ocupação fora da lei de clonagem de pessoas. Logo logo, através de uma trama razoavelmente simples, Schwarzenegger acaba clonado, mas escapa da morte para a qual estava programado. Então, nos encontramos com dois Schwarzenegger em cena, e é aí que a discussão começa a ficar divertida. Porque o clone não pe, de forma alguma, mau. De fato, ele pensa que é o Schwarzenegger, pois sua mente foi transplantada para o corpo. Então, como desejar sua morte?

E então fica clara a posição que o cineasta quer que o público tome em relação a um tema tão confuso: clonar é errado, especialmente porque pode cair nas "mãos erradas" (sempre uma preocupação norte americana), e acabar sendo uma decisão arbitrária de uma pessoa. Aliás, indica o filme, não só clonar é errado, mas todos os avanços tecnológicos do mundo indicam uma perda indesejada de inocência. Aí começam as contradições do filme: ele quer pregar a maldade por trás dos avanços tecnológicos usando os mais fantásticos efeitos especiais de computação, e uma montagem cheia de bossas gráficas. Ou seja, quer ser tradicional na ideologia e moderno na forma. O que é uma das enormes contradições, desde sempre, do cinema americano.

Em seguida entra em cena a contradição seguinte: o filme apresenta cuidadosamente questões filosóficas profundas, mas é claro que não tem disposição de respondê-las. Sempre que necessário apela às mais batidas cenas de perseguição de carro e tiroteio para resolver as situações. Ou seja, o filme é moderno no tema, mas completamente retrógrado na narrativa. Mais uma contradição impresssionante. Nesta equação o que surpreende de fato é a seriedade com que ele chega a colocar as perguntas, pode-se dizer que ele vai muito mais longe do que a filosofia cult de um Blade Runner por exemplo, porque aqui os replicantes não só pensam ser humanos, eles replicam as almas das pessoas. Quando você entra no ambiente de uma "fábrica de gente" é impossível não ficar chapado por alguns momentos, e o filme enquadra esta parte com grande seriedade.

Mas, ao longo do filme todo, ele surpreende pelo extremo humor autoconsciente demonstrado. Aliás, esta tem sido uma marca nos filmes de Schwarzenegger desde O Último Grande Herói. Ele mesmo parece não se levar a sério, e o filme possui piadas absolutamente hilárias. Como o momento no qual o astro pede a um dos vilões o qual ele rende que não reaja, senão ele vai ter que atirar, e seua filha pequena está ali do lado e "ela já vê violência gráfica suficiente na mídia", uma tirada autocrítica excepcional. Num outro momento aparece um psiquiatra virtual, que usa todos os clichês da psiquiatria no seu diagnóstico (sugerindo que todos os psiquiatras são como robôs repetindo clichês), e ainda em outro, uma mulher virtual, um programa de computador que recebe um dos personagens toda noite em casa: uma loira maravilhosa que adora assistir esportes na TV, elogia o tempo todo o homem e tira a roupa no primeiro segundo que ele quiser, uma piada genial com os desejos masculinos de mulher perfeita. E que tal um clone dizendo que "não tem sido ele mesmo ultimamente"?

Este humor pontua a trama, mas, finalmente, o filme coloca duas questões absolutamente enlouquecedoras que mexem com qualquer um. Primeiro, quando o vilão ameaça não simplesmente matar uma pessoa, pois ela deseja morrer, mas ressuscitá-la sem a lembrança deste desejo de morte. Ou seja, o verdadeiro poder não é mais matar, mas sim perpetuar a vida eterna contra a escolha de cada um. As implicações desta questão filosófica são tamanhas que nem pretendo começar uma discussão aqui, mas basta citar quantos filósofos já colocaram o suicídio como o ato maior de opção pessoal. E se ele for tirado de você? Depois, quando numa sequência muito forte, o Schwarzenegger que acompanhamos o filme todo descobre que o clone é ele, que o outro é o original, mas que ele jamais poderia saber disso pois a memória é igual. Mais uma vez, a cena é de virar a cabeça do avesso, afinal lida com questões de identidade e auto-conhecimento que são comuns a todos e cria este segundo medo universal: como podemos saber se nós somos quem pensamos que somos? Será que alguém pode estar 100% certo disso em algum momento?

Simplesmente por levantar todas estas perguntas o filme já tinha que ser levado muito mais a sério do que foi. E, o fato de estas perguntas estarem num filme "comercial" de ação, ao invés de diminuir sua importância, só aumenta a repercussão deste fato. Mas, no final, quando o filme precisa tomar de fato uma decisão de quão longe está disposto a levar sua ideologia, é que o projeto todo de filme sério despenca. No final, frente a uma decisão sobre qual Schwarzenegger deve morrer, ele acaba sem a coragem de assumir que aquele com o qual a platéia se identificou o tempo todo é um clone. E que, segundo nos ensinou o filme o tempo todo, clones não devem existir. E assume sua decisão, e a própria seriedade do filme, com mais uma tirada esperta: Schwarzenegger vira-se para a câmera e diz "Chega de filosofia". Ou seja, as discussões éticas têm um limite, e quando interferem com a diversão, chegou este limite. E aí o filme, ao se render a uma tentativa de "happy end" mostra todo o conservadorismo por trás de Hollywood: clonar não é errado, o errado mesmo é que os vilões clonem. Se for o Schwarzenegger ou o público que decidir quem pode ou não ser clonado, estará tudo bem. Isso indica que cada um pode se ver no direito de ter razão e decidir sobre esta questão, o que é sempre a saída hollywoodiana pelo individualismo e pela divisão clara do mundo em Bem e Mal, com regras diferentes se aplicando a cada um. Esta conclusão final de um filme que mistura de forma tão intensa humor, filosofia, ação, entretenimento, é muitíssimo importante no momento da formação de um código ético em torno de uma questão, como acontece com a clonagem no mundo científico de hoje, e não pode ser ignorada como "apenas mais um filme de ação". É muito mais do que isso. É muito mais sério do que isso, e muito mais profundo do que isso. E até Roger Spottiswoode sabe isso, mas para eles sempre interessou dizer que "cinema é a maior diversão", e que este cinema americano não coloca em cena discussões "cabeça", apenas entretém. É ruim, hein. E a nossa crítica continua caindo no conto da carochinha, anos e anos depois.

Eduardo Valente