Separações,
de Domingos Oliveira

Brasil, 2002


Separações começa após o terceiro uísque. A câmera gira ao redor de uma mesa de bar enquanto Domingos Oliveira, em seu autêntico papel de Domingos Oliveira, com a voz balbuciante e muito afeto nas palavras, compara os efeitos de um fim de um casamento com as de um doente terminal. Tanto em um caso como em outro, diz Domingos pela boca do personagem Cabral, vai-se da negação à agonia. Num primeiro momento, os cônjuges, como os doentes, não aceitam sua condição. Sob efeito do trauma da perda à vista, sentem-se em um pesadelo do qual, a qualquer hora, acordarão para uma vida melhor. No último estágio, após a aceitação da página virada, chega o luto. E também o desespero, o vazio, a falta de rumo, de sentido para tudo. A associação entre uma situação e outra, porém, será relativizada pelo diretor e pelo protagonista.

Ao contrário da doença terminal, a separação gera sobreviventes, ainda que feridos, mas não mortos sem esperanças. Reside nessa diferença a proposta afirmativa, para não dizer otimisma, tanto desse filme como da obra de Domingos. Por mais que se sofra, que se perca, que se mate e se morra, a vida sempre avança, conforme ele nos mostra. É um processo que, mesmo pontuado por rupturas, segue seu fluxo. A crença na renovação das trajetórias ou em sua retomada após alguns atritos dá uma cor de felicidade possível à amargura real das situações expostas na tela. Domingos não filma as dores do amor como são, não sempre pelo menos, mas como poderiam ser.

Isso não significa que, à moda da tradição das comédias românticas americanas, a vida seja consertada. O diretor e roteirista não idealiza os seres humanos ou as emoções. Na verdade, os problematiza, talvez, no limite da neurose. Essa característica estimula comparações com Woody Allen. Mas essa é uma ponte frágil demais para se atravessar. Allen guarda um ar cínico e cruel ao falar do homem e de seus conflitos. Ri de seus personagens. Domingos é doce. Ri com seus personagens pois se enxerga neles. Não os vê com superioridade, mas no mesmo plano. E tais personagens, longe de serem perfeitos, são todos tortos. Amam uma pessoa e desejam outra, titubeiam na hora de decidir algo e se arrependem após algumas decisões. A grandeza deles está em seus limites.

Esses personagens apaixonam-se, separam-se, cometem adultério, sofrem, riem, choram e rastejam em nome do amor. Entramos agora em outra ponte, essa mais sólida, mas não de todo confiável, que nos conduz a François Truffaut. Nos dois casos, o do carioca e o do francês, o amor é motor da vida. Não importa o que falam os personagens, quais são seus outros problemas de cotidiano, pois seus temas são únicos: a necessidade, os conflitos e as dores do amor. Sem ignorar o lado trágico da experiência romântica, Domingos é mais esperançoso em seu olhar. E também menos grave. O humor dos diálogos é empregado para recolocar fatos isolados no contexto mais amplo da aventura humana. A câmera nos diz: isso ou aquilo machuca, mas há cura para tudo.

Nenhum erro é definitivo, mudanças são possíveis, a existência é movimento, mas nem sempre, ou quase nunca, contínuo e em linha reta. Como se diz em Fale com Ela, de Pedro Almodóvar, "viver não é fácil". Domingos concorda, mas acredita, segundo seus filmes mais íntimos (Todas as Mulheres do Mundo, Edu Coração de Ouro, Amores) que o saldo, aquele resultado de bônus menos ônus, ainda é positivo. Bastaria, ainda segundo ele, persegui-lo. Portanto, se a vida não proporciona prazer permanente, ao menos é viável. E nos permite ser senhores, ainda que parcialmente, de nossos corações e atitudes. Mesmo pagando preços nem sempre baixos por nossas escolhas. Não deixa de ser relevante como as ações estão vinculadas ao tempo. Porque esse cinema em questão mostra os efeitos gerados pela caminhada do homem rumo à morte. É preciso viver com urgência e corrigir caminhos errados em Separações. E a questão é: onde está o erro? Onde investir o tempo?

O próprio diretor é eixo principal de sua narrativa dividida em vários blocos e personagens. Ele impõe sua voz emocionada e embriagada de vida ao dramaturgo Cabral. Entediado com a estabilidade conjugal, o protagonista pede férias à esposa (Priscilla Rozenbaum). Logo volta atrás. Tarde demais. A esposa já está de caso com um conhecido deles. Cabral desaba. Enquanto desce ao fundo do poço, apenas para descobrir que poços assim não têm fundo, outros personagens vivem suas crises. A filha dele é casada com um, transa com outro e leva um pé do marido porque, quem diria, ele está de caso com uma amiga dela. Já o diretor de uma peça equilibra-se, sem muito dor de cabeça, no meio fio das relações duplas.

Há quem veja na radiografia desse micro-universo humano, sediado em uma estreita faixa da Zona Sul do Rio e habitado por tipos vocacionados para a boêmia, a problematização burguesa de quem não tem problema. Os chavões filosóficos de boteco acentuam essa reação. Quem não tem o que resolver na vida, sob essa perspectiva, joga palavras molhadas ao vento. Domingos faria a crônica estéril e impotente de um segmento cultural do planeta Baixo Gávea e Baixo Leblon. Filmaria apenas o umbigo de sua galera. Enxergar os personagens e a as situações expostas na tela apenas por esse microscópio é ignorar exatamente um dos pontos altos do cinema desse subestimado cineasta. Ele trata de seu grupinho, sim, mas o torna familiar a nós. Extrai verdades mais amplas a partir de suas verdades subjetivas.

E uma das maiores delas é sua maneira de mostrar a amoralidade do amor. Princípios de conduta são arquivados ou adaptados às necessidades do momento quando seus personagens estão apaixonados. A moral passa a ser condizente com a natureza de cada um. Não o contrário. Para o ser que ama, ele tem razão. Sempre. Essa é uma postura peculiar para um leitor confesso de Dostoievski. Citado em Amores e Separações, o escritor russo defendia o sacrifício em nome do bem comum. Essa é a base de muitos de seus livros. Só a abdicação e a contenção purifica. Para os personagens de Domingos Oliveira, essa é uma postura incompatível com as razões do coração. E ela existe. "A verdadeira liberdade não é seguir os impulsos, mas obedecer as escolhas que fizemos para nós mesmos", diz Cabral, depois de comer o pão que a carência amassou.

São comuns as restrições à interpretação de Domingos. Seria possível concordar com a reclamação se ele interpretasse em cena. Porém, não o faz. Domingos é uma imagem que, ao balbuciar palavras em oratória trôpega, esbanja autenticidade. Essa verdade das palavras faz dele um personagem de si mesmo. Suas frases choram, berram, beijam e sangram. Tudo isso sem precisar representar, mas crendo no que está dizendo. Tal espontaneidade e convicção ameniza possíveis atritos colocados na linguagem cinematográfica. Não há como se incomodar com a marcação teatral dos atores e dos diálogos ou com o desleixo visual gerado pela escassez de produção quando o foco do filme está no ser humano e não na técnica. Não se visa o efeito realista, de modo a fazer as situações parecerem a vida como ela é, nem a farsa cômica, como as sitcoms brasileiras ou estrangeiras consagraram.

Seu artifícios narrativos podem, sim, ser considerados televisivos, como se fossem inspirados em séries como Comédia da Vida Privada e Os Normais, com uso de matalinguagem e atuações informais, mas, na verdade, foi a televisão que bebeu na fonte do diretor. Antes de entrar para a Globo, onde escreveu e dirigiu o memorável Ciranda Cirandinha, tinha investido em soluções, como as de Todas as Mulheres do Mundo, depois assimiladas pela telinha. Elementos do fim dos anos 60 tornaram-se mainstream no século 21. O lado ousadinho do mainstream. Mas novamente é preciso avaliar a segurança dessa ponte. Porque as séries, no fundo, são paródicas. Tiram uma onda com suas caricaturas. Domingos, repete-se, ama seus tipos. Tipos não, indivíduos. O diretor propõe uma encenação afetuosa, ora risonha, ora amarga, sobre os espinhos da privacidade. Em sua proposta, Separações é enorme. Tem a grandeza de não querer ser grande, mas pessoal, sem perder de vista a pretensão de encarar o ilimitado de cada um. . Parece o ensaio de um filme, um esboço não conclusivo, como são as questões do amor.

Cléber Eduardo