Secretária,
de Steven Shainberg

Secretary, EUA, 2002


De vez em quando a análise de alguns filmes é mais atrapalhada do que ajudada por seus defensores, por incrível que pareça. Gostar de um filme por todas as "razões erradas" é algo bastante comum, e uma busca rápida por textos na Internet sobre este filme nos leva a exemplos bem claros disto, especialmente entre a crítica norte-americana que, como era de se esperar (e seria tolice não pensar que se tratou de um jogo extremamente bem arquitetado pelo diretor e seus produtores), polarizou em torno da questão da "perversão sexual" presente no filme. De um lado, os detratores indo contra uma sexualização excessiva, como era de se esperar nos puritanos EUA, onde sexo sempre foi mais obsceno do que violência. Mas, o problema está do outro lado: os defensores do filme (no que talvez também seja algo bastante esperado, uma vez que complementam os dois lados da mesma moeda) se maravilham com esta dimensão "libertária" que o filme teria, mostrando um "amor idealizado" entre os dois pólos de uma relação abertamente sado-masoquista (este filme, aliás, já foi feito, e se chama Mentiras, filme coreano já exibido no Brasil). Para estes sexual-liberais, uma má notícia do meu quinhão sobre o filme: Secretária não se trata, nem por um segundo, de um filme sobre sado-masoquistas. Ou, pelo menos, se trata tanto quanto Procurando Nemo é um estudo profundo sobre o comportamento dos peixes, por exemplo.

A primeira pista vem do título do filme (e aqui me permito discordar da análise do compadre de redação, Cléber Eduardo) que é menos um estigma a lançar sobre uma classe profissional específica do que a utilização claramente metafórica da condição de um tipo de empregado típico nos EUA (se estivesse no Brasil o filme certamente se chamaria Doméstica, o que aliás podia ter a dupla utilidade de nos livrar de termos só o filme de Meirelles/Olival com este nome). Secretárias lá (numa sociedade muito mais "protestante" e empresarial, na sua busca incessante do lucro), domésticas aqui (resquício escravocrata e do abismo social), o que importa é que ambas podem ser exemplos de uma relação onde a subserviência é condição sine qua non – não são classes que, a priori, produzem nada, apenas fazem o "trabalho sujo" de alguém. É por isso que, logo no início da relação sado-masoquista, a personagem diz, como se tivesse carga sexual-masoquista por si só: "Eu sou sua secretária!" Na verdade, Shainberg utilizará a categoria para estabelecer o jogo que realmente importa no seu filme: um altamente mordaz e muito pouco conciliatório olhar sobre a relação entre classes, e mais especificamente, a relação patrão-empregado no sistema capitalista (ou seja, tudo que faltava no nacional Domésticas). Isso sim é o filme, e neste ponto o sado-masoquismo é o meio utilizado para atingir o fim, jamais o fim em si.

O filme começa, aliás, claudicante, com um olhar que aparenta patologizar todos os personagens de um núcleo familiar à la Todd Solondz (o pai bêbado, a mãe maluquinha, etc). Só depois que sua intriga efetivamente importante se desenrola é que poderemos entender o papel inicial de estabelecer estes personagens. O que realmente acontece desde o início é uma clara opção anti-naturalista que retira os personagens de um "mundo real" (especialmente óbvio na caracterização do escritório onde boa parte do filme se passa, mas não só ali), o que torna pedidos de mais informações sobre o passado ou a existência fora dali dos personagens um contrasenso. Estes, afinal, não existem para o diretor fora daqueles espaços e enfoque. Não importa o drama específico destas "pessoas", e sim o que lemos da nossa ordem social (e ao dizer nossa eu me refiro ao capitalismo contemporâneo, com todas as diferenças e especificidades nacionais compreendidas) a partir destas figuras, pois são isto que elas são antes de personagens. Da atuação dos atores à direção de arte e figurinos, passando mesmo pela estrutura dramatúrgico-narrativa, não há um segundo de Secretária que faça supor algo diferente de um "conto de fadas às avessas", e não uma história naturalista. O que temos são, sim, emblemas, e não personagens individualizados.

A partir da ida de Lee (a personagem principal) para o escritório do advogado, o jogo fica estabelecido, e ali o filme cresce muito. Em princípio o que seria uma idéia bastante simplória até, e no máximo assunto para um curta (a relação de classes e poder como um jogo sado-masoquista onde o patrão infringe dor e o empregado a recebe de bom grado – ampliado por se passar na terra da invenção do "abuso sexual" , que o filme cita ironicamente em certo momento), ganha relevância a cada cena, quando Shainberg revela pulso firme para levar a questão, de ambos os lados, bem mais longe do que uma simples piada. Seu olhar, aliás, embora irônico, nunca é apenas cômico. Ele não se exclui deste "mundo estranho e engraçado", pois filma os dois personagens com enorme atenção. Depois do estabelecimento do jogo de poder sexual, o filme leva a questão adiante ao demonstrar, antes de mais nada, a tendência predatória patronal ao jogo da "reposição de peças", após a plena exploração de uma delas. Mas, nem nisso ele é simples: não se trata aqui apenas de "esgotar" sua empregada, e sim de uma "culpa" (eminentemente burguesa) por esta exploração, onde se prefere afastar de si a explorada para que não fique claro a todo momento o mal que se faz a ela. É o momento de uma nova secretária chegar.

Mas, certamente, é do lado da secretária que o filme joga mais pesado na sua teia de significados: para ela, o abuso é uma necessidade. A satisfação da "produtividade" tendo sido descoberta (onde erros são punidos, e muitas vezes o patrão demonstra toda sua "sensibilidade" escutando os problemas da empregada), a "exploração" tendo sido internalizada, não há mais volta: a necessidade do reestabelecimento deste abuso como entendimento de sua relação com o mundo, negando todo o resto (seja família, seja o "amor", na impressionante seqüência da "greve de fome" que ainda respinga farpas fenomenais para a Igreja e sua fascinação pelo sofrimento) é o que dá norte a sua vida a partir de então. Numa vida sem qualquer perspectiva outra (como a que vemos no início do filme, e daí sua importância, como pela fala inicial da personagem que sai de uma instituição onde "tudo era melhor porque eu não precisava pensar, tinha hora para dormir, comer..."), a "completude" desta relação, onde as necessidades de um são compensadas pelas do outro, surge como crença única possível.

No final (quem não quiser saber do final, que pare por aqui), o idílio amoroso que alguns viram como elogio ao amor "estranho" não é nada disso. A mistura de ironia e desespero aqui vistos, a confusão entre objetivos e resultados, é o mesmo dos igualmente corajosos e complicados finais de um Taxi Driver ou de um A Última Noite. E há mais desespero nesta construção de felicidade torta do que idílio: basta olhar com muita atenção ao importantíssimo último plano do filme: o olhar de Lee para a câmera não é, de forma alguma, o de uma pessoa realizada. Há uma profunda tristeza conformada naquele olhar, que é a chave de compreensão da posição de Shainberg com relação ao material que exibe: esta dissecação das motivações e do porquê deste "casamento tão perfeito" entre dominantes e dominados não é vista com alegria e ironia longínqua, e sim com uma pontada e tanto de desesperança. A patologia, se é que há, não é de uma personagem e sim de uma sociedade e das relações que ela impõe. Que não se peça do cineasta uma "revolta" contra isso pela via da personagem, o que seria um completo contrasenso com o painel que ele quer traçar: a revolta já é o próprio filme que tenta colocar às claras o que estamos vivendo sem grande consciência. Se alguém deve se revoltar não é a personagem, e sim o espectador. Ao filme cabe aquilo que faz: ir até o fim em todas as suas idéias.

Eduardo Valente

P.S.: Embora o centro deste texto seja a exploração temática pelo diretor deste assunto, não se pode deixar de chamar a atenção para a coragem dos dois atores principais: vistos em separado (que no final das contas, é como um filme é filmado), vários dos planos do filme podiam ser de extremo ridículo e risco. Diz muito da confiança que tinham no diretor, e da disposição em colocar o filme acima de preocupações com a "imagem".