Secretária,
de Steven Shainberg

Secretary, EUA, 2002


O título de Secretária é sintomático. Ao associar a atividade remunerada da protagonista com sua compulsão para a subserviência, toma um caso específico da ficção e o transforma em sintoma de categoria profissional. Moral da história: toda secretária gosta de ser pau mandado e ainda dizer sim senhor. Outra versão: toda mulher vocacionada para ser pau mandado só pode se realizar com um patrão empenhada em tratá-la a pontapés. Tal reducionismo é compartilhado pelo filme. Trata-se de um drama sado-maso-chique sobre a relação de um advogado fissurado em bater e sua assistente desejosa de apanhar. Esse romance entre opressor e humilhada é menos uma daquelas xaropadas psico-clínicas, que tomam personagens como cobaias de supostos estudos mentais, e mais um pretexto para se exibir um catálogo de bizarrices. Não é o caso de se ver as atitudes estranhas e inusitadas dos personagens com algo doentio, mas, ao contrário, evidenciar como os personagens são expostos dessa forma sensacionalista, como se carregassem uma etiqueta de perturbados em cada gesto, em cada olhar, em cada balbucio de palavras, sem em nenhum momento se tentar naturalizar seus comportamentos peculiares. Se a idéia é injetar no espectador a tolerância com o diferente, de modo a nos convencer de que os esquisitos também amam (à sua maneira), a postura do diretor Steven Shainberg nos distancia de suas criaturas, projetadas na tela como sintomas de patologias, não como expressões de subjetividade e de suas biografias moldadas por contextos variados. Só é possível vê-los como objetos, não como seres humanos.

A mesma postura vale para a visualização do ambiente principal. Planos descritivos escancaram a atmosfera modernosa e asséptica do escritório, com uma câmera atenta a detalhes cenográficos observados de forma fetichista. O cenário tem vida própria, no caso falta de vida, ou uma vida estéril, sem autenticidade. Não é apenas um cenário, mas expressão do traço doentio do dono. Nada saberemos sobre ele, a não ser sua tendência a, sexualmente ou não, agredir sua secretária. Dela somos informados que, no passado, testemunhou brigas familiares e, antes de arrumar emprego de capacho do doutorzinho, estava internada no hospício. Motivo: automutilação nos momentos de estresse.

Ela se fere com objetos pontiagudos de modo a resistir, pela dor física, às dores emocionais geradas por situações da vida. O mundo é cruel. Ela, frágil. O sofrimento será sua pilha para resistir à brutalidade das relações ou das não-relações. Para ser aceita, amada e observada, ou seja, para existir para o(s) outro(s), tem de sofrer violência. Em um primeiro momento, dela própria, espécie de masturbação masoquista. Depois, do patrão. A trilha-sonora de Angelo Badalamenti acentua as piscadas de olho um tanto caolhas para David Lynch. Shainberg esforça-se para filmar suas anomalias com aquele jeitão cult, com tipos petrificados mesmo em situações limites, situações insólitas, universo calcado no absurdo, enfoque zombeteiro para o que pretende valorizar. Parece filme de quem tem medo de sair de casa e reproduz na intimidade a brutalidade lá de fora, para usar a tipificação/generalização da própria obra.

Cléber Eduardo