Rua
Seis s/nº,
de João Batista de Andrade
Brasil, 2003
Sintetizar a obra de um cineasta em poucas
frases é sempre um exercício redutor. Como toda síntese,
para ser rigoroso. Mas apenas a título de referência, não
mais que isso, pode-se afirmar sobre João Batista de Andrade sem
muito risco que o diretor expressa idéias pelo cinema, mas não
cinematograficamente. A frase é aberta a duas contestações.
Primeiro porque todo filme pode ser considerado cinematográfico
apenas por ser exibido em uma tela e fazer parte da expressão cinema.
Segundo porque, se há na afirmação um juízo
de valor e conceito em torno do que é mais cinematográfico,
esse julgamento tem como sustentação uma subjetividade.
Feita essa ressalva, retomamos a afirmação. Nos filmes de
João Batista, o cinema é um meio de passar mensagens, fazer
denúncias ou transmitir as angústias de seu autor, não
um ponto de partida e de chegada. O diretor emprega a linguagem como transporte
de idéias, sem levar em conta que as idéias estão
na linguagem, em uma opção de enquadramento, de luz e de
estrutura, que a própria linguagem é em si uma posição,
uma postura, a expressão de um mundo íntimo e exterior.
Isso não impede de se reconhecer sua
aguda convicção na matéria prima das obras e no material
pronto. Só não há aqui como ignorar a ditadura das
idéias motivadoras dos filmes sobre as formas dos mesmos. Estamos
tratando de uma avaliação crítica e não apenas
dos posicionamentos de um cidadão. Estar do lado do bem, das boas
intenções, das causas justas, nunca gerou, por si só,
obras de valor estético. No máximo, de valor moral, político
e ético. Tudo isso para se chegar ao ponto de que, ao contrário
da maior parte de seus trabalhos, Rua 6 s/nº lança-se a
um jogo de linguagem cinematográfica. Parece aberto a não
ser escravo do tema e até tematiza a representação.
Essa aparente mudança, porém, é apenas de superfície.
Porque abordar a própria linguagem, no caso as armadilhas da aparência
com a qual ela é construída, pode tornar-se apenas outro
tema. E se torna. Se em seus filmes anteriores havia uma crença
no conteúdo sem dar muita bola para o restante, nesse a transformação
da forma em conteúdo resulta trôpega, sem a mesma convicção
dos outros trabalhos. E com direito a metáforas visuais grosseiras
e cenicamente constrangedoras, como as seqüências de pessoas
comendo papel.
Marco Ricca é um poeta de horas vagas
– ou seja, todas as horas – que não troca a Olivetti por um computador.
Como se sua atitude não fosse suficiente para mostrar como é
um sujeito defasado, que não acompanha o caminhar da História,
ele insiste em verbalizar várias vezes sua convicção
de manter-se preso ao passado. Diz: "Não dou certo com Bill
Gates". Certo! Não quer se adaptar. Estamos mais uma vez no
terreno das mensagens transmitidas didaticamente e com a sutileza de um
machado ideológico. Para acentuar a idéia de tipo antigo,
marginal na contemporaneidade, ele se locomove com um fuscão. E
escreve poesia no bar. E provará ao longo de sua jornada interior
e exterior ser um sujeito de honestidade à prova de necessidades.
Apesar de estar desempregado, endividado, à espera de mais um filho,
não usa o dinheiro que, no momento do suspiro final, um senhor
entregou em sua mão. A grana é de uma mulher que ele tenta
encontrar nos buracos das cidades-satélite do Distrito Federal.
Sua mulher lhe joga na cara que ele não sobe na vida porque não
quer. E o que quer? Apenas fazer o certo, dar o dinheiro a quem pertence.
Um desejo de alto risco, pois, para realizá-lo, vai envolver-se
com bandidos, ligados a crimes de tráfico e de política,
quando não de ambas as atividades
Conforme avança a narrativa, a documentação
do real é contaminada pela imaginação do personagem.
Temos tanto o registro de ruas e moradores da periferia, com as quais
o personagem de ficção interage sem disfarçar sua
presença como ator em um mundo real, e a encenação
de situações existentes na cabeça do protagonista.
No primeiro caso, quanto mais tenta se aproximar da realidade, mas a câmera
se distancia, jogando-o para longe da ficção. Marco Ricca
mostra-se, nos contatos com os moradores dos bolsões de pobreza
por onde passa, completamente desajeitado. Coloca as mãos no bolso
da jaqueta, sai do personagem e age como Ricca. Em vez da ficção
incorporar o real, portanto, estabelece um abismo em relação
a ele. A tensão dessa convivência não resulta em momentos
de grande efeito estético. Na verdade, um registro atenua o outro.
E o ficcional apenas vampiriza o ambiente pobre como se esse procedimento
em si desse relevância social ao material. Não dá.
O esfacelamento da razão do protagonista, que passa a não
diferir alucinação de realidade, também não
chega a ter força estética. Nem como opção
narrativa, tampouco como reflexão conceitual. João Batista
entra na onda da discussão da imagem, expondo sua falácia
como evidência de verdade, mas o faz sem um mínimo de potência
formal. A montagem até tenta dar às imagens certa proteína,
mas o anemismo predomina
Cléber Eduardo
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