Rios
Vermelhos,
de Mathieu Kassovitz
Les Rivières Pourpres,
França, 2000
Um Certo Momento do Cinema Francês
O comentário crítico mais óbvio
sobre Rios Vermelhos é de que o cinema francês está
nos apresentando um produto idêntico aos moldes hollywoodianos.
Certo, dizer que o melhor filme americano veio da França é
uma boa piada, só que isso é uma simplificação
limitada, que não dá conta de tudo.
Pra começar que nenhum país
nem nenhuma cinematografia são donos de qualquer espécie
de gênero. O 'whodunit', o filme de mistério e investigação
típico, existe em todas as literaturas. Sendo sincero, não
acredito nesse rótulo "parece filme americano". Acho que o perigo
é justamente dar esse status a filmes comunicativos e narrativamente
tradicionais, acaba sendo uma atitude parecida do seu lamentável
contraponto, que é o de projetos serem feitos com a intenção,
de fato, de parecerem produtos hollywoodianos.
Todas as cinematografias mais atuantes, vez
por outra, apresentam produções que ambicionam a eficiência
comunicativa própria dos filmes dos estúdios americanos.
E os franceses estão se vendo cada vez mais diante dessa possibilidade
e necessidade, uma vez que, segundo notícias recentes, estão
conseguindo duelar com os gringos em seu mercado interno. Mas será
que é só a isso que se resumem os filmes?
O Truffaut atacou um tipo de cinema solene
e institucionalizado, não que imitasse o americano, mas, ao contrário,
estava se transformando em algo ainda mais careta e status quo que os
filmes da Matrix. Mas cinema feito em gêneros e chaves semelhantes
aos americanos sempre rolou, e às vezes do bom. O próprio
Truffaut sempre se referiu elogiosamente a gente como H. G. Clouzot, reconhecendo
o carinho que tinha por filmes como O Corvo.
Não, é claro que um filme não
pode ser visto apenas pelo seu formato de produção. O que
vale é outra coisa. Porque, visto em plano geral, vê-se que
o jovem auteur francês (Kassovitz) topou dirigir o projeto
caro, contratado pelo produtorzão (Alain Goldman), com um grande
astro (Jean Reno) e um fotógrafo (Thierry Arbogast) bem conhecidos
pela sua colaboração com o cinema mais criticado por seu
viés comercial (de Luc Besson, por exemplo). Aí os partidários
do cinema industrial e os defensores da política dos autores se
unem na interpretação imediata: o enfant terrible
está se vendendo. Fácil de concordar, mas as coisas não
são bem assim. De fato, o filme é perfeito nas atmosferas
que cria, com todas aquelas situações e personagens que
ficam numa beirada entre o folclórico e o clichê. Para quem
quer entretenimento, lá está.
Legal. Mas a pauleira do filme está
na acusação evidente do que representa uma elite encastelada
e arrogante.
Sim, porque é um filme sobre a crise
da estratificação social, chegando à discussão
da eugenia. Ou seja, é um duelo da França do "Bleu, Blanc,
Rouge" contra a França do "Black, Blanc, Beurre", a França
tradicional contra a França miscigenada.
O lance é o seguinte: numa universidade
ultra-seleta, o costume é de que os filhos de professores casam-se
uns com os outros, ao longo de várias gerações, criando
uma tradição familiar no berço da elite. Que, no
entanto, depois de certo tempo começa a ter os inevitáveis
problemas genéticos. Daí algumas das cabeças coroadas
da universidade, depois de um estudo obsessivo de genética (chegando
no tema da eugenia), passam a trocar alguns bebês na maternidade,
cruzando filhos de professores com filhos de camponeses sem ter que passar
por alterações sociais. Daí surgem complicações
que levam a uma trama folhetinesca de vingança, com um ou outro
problema de verossimilhança, que não chegaram a me incomodar.
O personagem do Jean Reno, Pierre Niemans,
foi esvaziado na passagem do romance para o filme, tornando-se mais próximo
dos clichezões do gênero. Mas o seu companheiro de investigações,
o personagem do Vincent Cassel, Max Kerkerian, indica com mais clareza
as opções do filme. É apresentado acendendo um pétard
e fumando ele dentro do carro-patrulha, assustando seus dois colegas policiais,
dois trapalhões que parecem remeter aos personagens de Hergé
em Tintin, Dupond e Dupont. Mais à frente, ira demonstrar
violentamente a raiva que sente dos "fachos", os xenófobos
fascistas.
Quando a seleção francesa estava
disputando a Eurocopa de 96, Jean-Marie Le Pen afirmou que aquele selecionado
"black, blanc, beurre" não representava a verdadeira França.
Daí se percebe que a melhor influência que o esporte teve
na política internacional desde Jesse Owens foi a vitória
da equipe francesa em 98, liderada pelo arrogante filho de argelinos Zinedine
Zidane, contando ainda em seu elenco com gente que vinha da Guiana, das
Antilhas, Haiti, Marrocos e mais uma porção de lugares.
Em pleno tempo de bushes e berlusconis, o movimento de Le Pen na França
perdeu muito de sua força na terra de Asterix. Mas ainda é
um espectro imenso que acinzenta a Europa.
Por essas e outras, a comunicabilidade e
a eficiência narrativa do filme de Kassovitz e do produtor Alain
Goldman são admiráveis.
Daniel Caetano
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