Pollock,
de Ed Harris


Pollock, EUA, 2000

É certamente incrível observar o momento em que uma estratégia narrativa outrora considerada nova torna-se batida, comum. Nos filmes biográficos – e é fato que O Poderoso Chefão é o principal responsável por isso –, foi a passagem de uma estrutura narrativa linear para um intrincado jogo de memórias que enlouquece a narrativa, criando numerosos flashbacks e fazendo do filme um quebra-cabeças temporal. Desse gênero de filme, uma forma se cristalizou: na primeira seqüência do filme, vemos um momento discreto mas cabal do personagem, nem no começo nem no fim de seu percurso, que aparentemente dará a chave de decifração para o filme inteiro. Em Pollock, vemos logo de saída um pintor cujo gênio foi finalmente reconhecido, em uma de suas exposições. Com um olhar cansado, fatigado não se sabe ao certo por quê (ver-se-á as razões ao longo do filme), ele olha para a sua companheira, e logo depois disso o filme nos joga diretamente para alguns anos antes, e de lá vai nos contar linearmente a história de Jackson Pollock, pintor que sai do cubismo e do fauve para inaugurar uma pintura americana original com o expressionismo abstrato.

Ao contrário de outras obras do gênero, Pollock nos faz de fato entrar em contato com aquilo que de fato torna o indivíduo Jackson Pollock diferente dos demais seres humanos: sua pintura. Somos mergulhados num universo ainda figurativo de sua obra prévia, vemos seu percurso até fugir radicalmente da figura e do abstracionismo anterior a ele (Kandinski e alguma pintura surrealista) com um estilo original de pintura que consiste em jogar a tinta diretamente à tela (deitada no chão) sem entretanto o toque dos pincéis na superfície branca do quadro. O filme acompanha a maturação do seu estilo e vai até o esgotamento quando, acometido do vício do alcoolismo, Pollock deixa de inovar e passa a repetir seus procedimentos e deixar de surpreender os críticos.

Mas não se creia por isso que Pollock é um filme sobre a arte. Não. O filme de Ed Harris não deixa de escapar do docudrama, da narrativa da vida do pintor genial que tem problemas de auto-afirmação como pintor, que vive dramas familiares e de reconhecimento, que precisa ser guiado para o caminho certo por uma mulher que mais tarde viria a ser sua esposa, pelo embate com os críticos que menosprezam o valor de seus quadros, etc. Mesmo dando um espaço considerável à apreciação de sua arte, o filme tem seu foco principal na vida do artista. Ponto fraco, pois acaba-se permitindo extrair do filme determinismos um pouco frágeis (melhor momento na vida = melhor momento na arte) e sobretudo pela maneira um pouco sádica que o cinema narrativo americano tem de psicologizar todos os atos de seus personagens, de vampirizá-los a tal ponto em que cada gesto "de artista" deve estar acompanhado de uma explicação que a torne "única", "excepcional", ou seja, absolutamente desvinculado da vida de um ser humano. Quase um alien.

Notante a isso, podemos observar outro discurso comum a filmes biográficos de artista. Quando o autor é um maldito, pouco importa sua trajetória de vida e os elementos que fazem de cada vivência algo de peculiar: esse artista será Van Gogh. E tem muito de Van Gogh em Pollock: momentos de arroubo emocional, crises artísticas, conflitos com o irmão, dificuldades de relação com o sexo oposto, momentos de incompatibilidade social (agride a esposa entre amigos, destrói uma mesa de jantar, estraga festas, etc.). A velha e ressecada figura do artista como um ser humano acima do humano, do gênio que é divinizado. Ou do pintor como louco, o que acaba dando no mesmo, uma vez que os traços entre loucura e divinidade existem desde a Grécia antiga na figura do oráculo.

Isso tudo faz de Pollock um filme fraco? Talvez, mas não deixa de haver momentos enternecedores, cenas de uma sensibilidade e de uma leveza de mão pouco comuns no cinema americano, incluído o independente. Uma cena seduz pela simplicidade e pela discrição: o jovem Pollock, com inúmeros problemas familiares e de afirmação, vai à casa de uma admiradora de suas telas e durante todo o dia os dois conversam e trocam impressões sobre a arte e sobre a vida. Ao fim da noite, ela o convida para sua casa. A cena de dentro de casa é impressionante. Em um só plano, eles fecham a porta e se beijam; ela dirige-se lentamente para o quarto, no fundo do plano; deixa cair, aos poucos, algumas peças de roupa, mas preserva sua nudez; Pollock, sem entender primeiramente muita coisa, se dá conta do que está acontecendo e encaminha-se, por sua vez, ao quarto; ao fundo da tela, sempre com uma luz muito fraca e com fortes grãos na tela, vemos o dorso nu que abre os braços para o pintor. Stop. Cena de uma discrição bela, que dá tempo para uma profusão de sentimentos se manifestarem na tela e para o espectador compreender muito mesmo com as (relativamente) poucas informações dadas pela cena. Mais algumas cenas como essa e Pollock seria um filme bem melhor.

Ruy Gardnier