O
Planeta dos Macacos,
de Tim Burton
Planet
of the Apes, EUA, 2001
Edward, O
Retorno
Tirando por A Lenda
do Cavaleiro Sem Cabeça, poderia se imaginar outra vertente
para a obra de Tim Burton. A fonte inicial de inspiração
de seus filmes, os contos de fada invertidos, deram lugar unicamente a
um apuro visual e uma incorporação romantismo-fim-de-século-XIX
tanto nos visuais quanto na narrativa. Poe não estava longe, e
Turner só teria que confrontar-se com as brumas ao invés
da luz. A temática social – e até metafísica – da
exclusão, presente em todos seus filmes anteriores, havia saído
de cena. Nada mais estimulante, então, do que saber que Burton
faria um remake do Planeta dos Macacos. Bem poderíamos imaginar
tudo que poderia sair desse mundo que o autor de Batman, O Retorno
e Edward Mãos de Tesoura criaria: os macacos substituiriam
os homens na supremacia de um mundo um pouquinho parecido com o nosso,
e poderíamos nos ver no espelho do ponto de vista de símios.
Mas O Planeta dos
Macacos não é só isso. Dessa vez, Tim Burton
superou todas as suas melhores formulações, e fez o grande
filme político dos últimos anos. Ao contrário dos
filmes de temática política, desgastados e absolutamente
inúteis do ponto de vista do engajamento (alguém que já
não seja de esquerda moderada vai ver um filme de Ken Loach?),
é nas ficções americanas de grande orçamento
que o jogo da política é melhor jogado. John Carpenter já
havia feito Fuga de Los Angeles, ode à anarquia e libelo
contra toda forma de autoridade (o que repugna tanto a direita quanto
a esquerda burocrática), Wes Craven fez Criaturas Atrás
das Paredes, tendo como tema o racismo, Clint Eastwood realizou Crime
Verdadeiro, thriller filosófico sobre a falibilidade da pena
de morte (emulando Suplício de uma Alma, de Fritz Lang).
Tim Burton, ciente de sua posição no mercado, fez um filme
que multiplica por n todas as suas críticas ao modelo homem-americano-branco-dominador.
O Planeta dos Macacos é provavelmente o filme hollywoodiano
mais sombrio e que mais despreza o poder do homem desde Os Pássaros,
de Alfred Hitchcock, 1962.
Não caiamos
em duas ciladas óbvias, através das quais os jornalistas
e cinéfilos incautos se esbaldarão para falar mal do filme.
Primeiramente, não comparemos o filme ao anterior, de Franklin
Schaeffner. Trata-se de outro filme, de outra obra, sem qualquer necessidade
de se remeter ao primeiro filme. Em segundo lugar, não analisaremos
o filme à luz dos padrões "artísticos" de uma obra
"de arte", como roteiro, verossimilhança, etc. O Planeta dos
Macacos é um conto de fadas, um filme de gênero, e só
deve ser analisado sob esse aspecto (ao contrário do primeiro,
que era um filme de sci-fi), à luz das regras desse gênero.
E, como em todos os contos de fadas, as "fraquezas" do roteiro ganham
outra dimensão: pouca ambigüidade, posições
já delineadas (bem/mal), ingenuidade na condução
dos argumentos... Se assim observarmos o filme, veremos um roteiro excelente,
que sabe atrair a atenção do espectador e guiá-lo
para outra dimensão do relato.
Estamos num planeta
de macacos. Um foguete espacial e uma espécie de tempestade cósmica
levam Mark Wahlberg a um planeta em que os homens são subjugados
por macacos que falam inglês, são muito mais fortes que o
homo sapiens e, mesmo inteligentes, não evoluíram uma cultura
tecnológica (de formas que eles ainda se espantam com armas de
fogo e explosões). Mas a graça do filme é que o homem
jamais é visto como espelho do que o macaco é na Terra.
Ele parece antes equivalente em posição na Terra ao que
seriam os negros (ocupam tarefas de escravos nas casas dos macacos), os
judeus (absolutamente tementes aos macacos, como os judeus em campos)
ou qualquer minoria (considerados "sem alma", sem inteligência,
sem saber controlar seus instintos, como os pobres do Terceiro Mundo).
Nesse O Planeta dos Macacos, os homens falam, articulam-se, são
como os homens do planeta Terra. Apenas a evolução foi mais
amiga dos macacos e lhes deu uma força física e uma capacidade
de usá-la em comunidade que não houve na Terra. Ou seja,
os homens são a classe excluída da Terra. Grande sacada
a de Tim Burton: dessa vez, o excluído não é mais
Edward, o monstro; não é mais Pingüim, o bandido; não
é Ed Wood, o pior cineasta do mundo, ou Vincent, ou Frankensalsicha,
personagens de seus curtas-metragens – dessa vez, o excluído é
o homem branco, o que domina o mundo. É Edward que está
de volta, e dessa vez para mostrar a sua cara e garantir sua existência
não num palácio de cristal, mas no mundo, para garantir
sua existência diante de seus diferentes. Não é uma
visão futurística pessimista do mundo; é um diagnóstico
do mundo contemporâneo. Por quê?
Porque a dialética
que se desenvolve no filme não é homem/macaco, mas excluído/dominante,
ou tolerante/intolerante, ou ainda com/sem sensibilidade. O filme deixa
isso claro desde o início. Ari, a personagem de Helena Bonham-Carter,
diz ao Capitão Leo (Mark Wahlberg) em determinado momento: "Você
é sensível? A sensibilidade não é uma qualidade
muito comum nos homens". A partir daí, a distinção
homem/macaco passa a ser um mero mcguffin, porque aquilo que está
verdadeiramente em jogo é a luta entre aqueles que acham que a
diferença deve ser tolerada e adquirir um convívio pacífico
com o modelo principal (Ari, seu pai e, logicamente, todos os homens do
planeta) contra aqueles que acham que a diferença deve ser extinta
(Thade, interpretado por Tim Roth, e seus seguidores). A luta que se desenvolve
então não é a do personagem principal pela sua sobrevivência,
mas a liderança de um grupo de homens que se consideram inferiores
para um lugar ao sol, a luta de um estado de minoridade (intelectual,
de orgulho, desagregação) para um de maioridade. Não
são só a bela Estella Warren, Kris Kristofferson, Luke Eberl
e os outros homens que estão nesse exército (muito mais
fraco fisicamente, é verdade). É também Edward mãos-de-tesoura,
o Pingüim, todos os personagens de Tim Burton que almejam seu lugar
não mais afastados do mundo que não os compreende, mas exibindo
sua diferença e lutando para mantê-la existindo dentro
da comunidade. É Edward que vai à luta para conquistar
sua Winona Ryder.
Mas Tim Burton não
é voluntarista. Ele tem, antes, uma tendência ao pessimismo,
porque sabe que o mundo contemporâneo não é tão
fácil de ser mudado quanto o mundo dos macacos, e um happy end
sempre envolveria um grau de falsidade. E então, Mark Wahlberg
conquista a sua maioridade no planeta dos macacos e estamos conversados?
Não. Ele cria um epílogo (aqui sugerimos ao leitor que ainda
não viu o filme que pare sua leitura, a risco de saber de antemão
o fim da história) onde Wahlberg volta à Terra, ao mesmo
ano em que havia saído, 2029. Sua espaçonave, num ato absoluto
de liberdade narrativa e nenhuma verossimilhança – o que só
aumenta a ênfase que se dá ao conteúdo político
da trama –, aterrissa no Memorial de Lincoln. Ao subir as escadarias,
observa umas inscrições e, quando a câmera desce,
vemos que a estátua que lá está é a de um...
macaco. Nesse mesmo momento, chegam a polícia, os fotógrafos...
os carros, as câmeras, todas são as de hoje, 2001... os carros
páram, os fotógrafos se posicionam. Eles são homens?
Não, são macacos. Onde estamos? Em outro mundo, em outra
possibilidade da Terra, a Terra foi dominada pelos macacos? NÃO,
muito pelo contrário, estamos nesta Terra, neste tempo, e os macacos
somos nós!! O recado é inequívoco: não estamos
mais na América selvagem, desbravadora, de Lincoln, Emerson e Whitman,
do "governo do povo, pelo povo e para o povo" do Gettysburg Adress, mas
na etapa mundial em que a América comanda a exclusão das
diferenças, dentro dela mesma e no mundo inteiro. O Lincoln de
hoje é um macaco. Nós, os macacos, os intolerantes. A polícia
que aponta o revólver sem perguntar o porquê, o fotógrafo
que explora a imagem do "criminoso" sem se ligar nos possíveis
usos que seu trabalho pode ter. Eis-te macaco, explorador! O filme se
fecha sobre essa cena, em declarado tom menor, final infeliz – menos esperando
uma sequel do que abrindo para os excluídos, aqueles a quem
primeiramente Tim Burton se dirige, a reunirem-se e tentar mudar o estado
de coisas.
Mesmo tirante o sentido
político da fábula, O Planeta dos Macacos merece
muito mais atenção. A fotografia de Phillippe Rousselot,
notável por renovar a fotografia em estúdio em filmes franceses
da década de 80 (Beineix notadamente), é exuberante e remonta
incrivelmente ao trabalho de A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça,
em suas paisagens fantasmagóricas fortemente carregadas no cinza.
E a maquiagem, por mais que se caia no senso comum (é claro que
um filme big budget teria uma habilidade técnica notável),
é digna de ser elogiada por não conceder nada à beleza
dos atores e desfigurá-los completamente, tornando Tim Roth um
macaco repugnante e Helena Bonham-Carter uma macaca de traços levemente
adocicados, mas ainda uma macaca, claramente não-humana.
Uma surpresa adorável,
contudo, revela-se na atenção com que Tim Burton filma os
costumes dos macacos. Seus gestos simiescos, soando terrivelmente arbitrários
para nós, nos chamam a atenção para como terrivelmente
arbitrários devem ser os nossos próprios atos vistos de
um planeta distanciado. Distanciamento antropológico imediato.
A morte do pai de Thade nos parece o melhor exemplo: o macaco esbraveja,
pula loucamente, alcança o teto, volta... Tim Roth, excelente,
transita nos dois níveis do patético, do emocional ao ridículo,
assim como qualquer velório que se queira muito importante.
Se há algum
defeito em O Planeta dos Macacos, esse reside unicamente no momento
da partida de Mark Wahlberg do planeta. Um quase-final redentor, beirando
o lacrimejante, mas que não tira o brilho do conjunto. Nas despedidas,
dá um beijo na boca, terno, em Ari, claramente apaixonada por ele;
Daena, também enamorada, só que humana, recebe um beijo
mais caloroso, mas também de ternura. Ainda um traço de
antropocentrismo? Preferimos acreditar em outra lógica: o amor
surge entre iguais, mas a diferença é permitida.
Com seu mais novo
filme, Tim Burton reinaugura sua obra. Sai da posição de
gueto que seus personagens de predileção ocupavam e enfrenta-se
com o mundo. Seu conto de fadas não é mais uma acomodação
a uma triste condição de menor, mas um clamor ao combate
à indiferença. É uma fábula contra o autoritarismo,
mas antes de tudo o autoritarismo de hoje, político (corte de verbas
nas áreas sociais, darwinismo social) disfarçado de econômico.
Tim Burton reassume seu discurso com todas as forças, e ainda mantém
todo seu preciosismo visual intocado, sem prejudicar o relato ou vice-versa.
A criança "esquisitona" torna-se rebelde. Melhor para seus admiradores.
Ruy Gardnier
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