Paulinho
da Viola Meu Tempo É Hoje,
de Izabel Jaguaribe
Brasil, 2003
0. Fernando
Calazans, um dos estilistas da crônica esportiva brasileira, não
cansa de lembrar o quanto a ditadura do técnico e a imposição
de modelos rígidos de posicionamento acabam castrando a liberdade
e a criatividade do craque, impedindo-o de real;izar a melhor expressão
de sua arte. OK, futebol não é cinema, e técnico
de futebol não é exatamente uma boa metáfora para
o trabalho de mise-en-scène cinematográfica. Mas basta ver
Paulinho da Viola tocando solitário num suntuoso estúdio
decorado com paredes cenográficas de um vermelho fashion
para nos lembrarmos de outra das frases repetidas à exaustão
pelos comentaristas esportivos, todas as diferenças com o cinema
à parte: pouco importa que no time só tenha craque, o técnico
pode perder o jogo.
1. "Meu
tempo é hoje" era para ser mais do que o subtítulo
do filme. Era para ser a fórmula de acesso ao universo pessoal,
pessoalíssimo do cantor e compositor Paulinho da Viola, sambista
renovador e poeta talentoso que mantém com as coisas que tem a
seu redor uma relação de temporalidade toda particular.
A aposta, parece que a diretora Izabel Jaguaribe e o roteirista Zuenir
Ventura a fizeram juntos: fazer dessa temporalidade difusa, dessa estranha
relação com o tempo que duvida haver saudade mas que mantém
com todas as coisas do passado e de sua tradição uma relação
absolutamente solene, uma espécie de leitmotif estruturante do
roteiro que faria evoluir dramaticamente o filme ao mesmo tempo que remeteria
todos os aspectos da existência do personagem retratado ao eixo
principal da trama. Temos um roteiro.
2. Antes de
saber se esse roteiro funciona, valeria inicialmente fazer outro tipo
de questionamento: há necessidade de roteiro desse tipo? Outros
filmes recentes souberam ancorar o eixo dramático da "trama"
em outro aspecto que não seja a tentativa de compor um tipo: João
Moreira Salles fragmenta a narrativa em nacos de cotidiano para filmar
o pianista Nélson Freire, Andrucha Waddington parte de "qualquer
lugar" para tentar achar o fenômeno "São João"
sem guia, no mesmo nível dos olhos de seus entrevistados. Aqui,
conceituar a relação do protagonista do documentário
com o tempo serve apenas a um critério tipificante um tanto tolo
que, sim, consegue cimentar a narrativa do filme mas a aparência
de sair do filme achando que ele apresenta uma tese coerente é
uma qualidade que se esgota em si mesma? Coerente ou não, vemos
que a proposição que o filme quer demonstrar "Quando
penso no futuro, não esqueço do passado", como uma
de suas canções diz de fato cabe a Paulinho da Viola
assim como o vemos em filme, mas que na própria materialidade das
cenas que vemos há muito mais temas a serem levantados, muito mais
situações de interesse, muito mais etc., e Meu Tempo
É Hoje parece estar fascinado unicamente e comprovar sua tese
e conseguir montar juntas a partir dela as cenas mais pitorescas que se
conseguiu filmar.
3. Assim, vemos
toda uma mitologia dos veteranos samba aqui renovada. O elogio do Centro
da cidade, dos locais tradicionais, o elogio do profissional dedicado
(o expert da sinuca, o homem que conserta relógios, o próprio
Paulinho que é um consertador perfeccionista e patológico),
a vida com os outros sambistas particularmente tocantes as cenas
com a Velha Guarda da Portela e com Zeca Pagodinho , a vida de pai
de família tranqüilo porém cheio de manias... O filme
constrói esse painel com alguma graça, mas com eficiência
relativa: para cada cena em que se evolui em alguma medida a personalidade
de nosso protagonista (a visita à garagem, a dança e as
conversas com a família), corresponde uma cena feita mais para
servir de portfólio ao diretor de fotografia (a sinuca) ou um encontro
para fazer efeito de sensação (Marina Lima e Marisa Monte,
por mais que tenham regravado nos últimos anos canções
de Paulinho, não acrescentam muito ao filme).
4. Quanto à
música, tão importante quanto o fio condutor Paulinho-tempo-futuro-passado,
o filme dedica a ela tempo suficiente para que o cantor consiga nos deslumbrar
com suas canções. Podemos sentir falta de algumas ("Para
Ver as Meninas"), podemos acreditar que algumas mereciam melhor atenção
("Coisas do Mundo, Minha Nega"), mas a principal questão
a respeito da música diz respeito à encenação
disposta para que Paulinho da Viola possa cantar suas músicas.
Imponentes demais para uma pessoa que vive de modo bastante estóico
o próprio filme ajuda a construir esse mito , o cenário
e a iluminação das cenas de música acham um Paulinho
sem tanta naturalidade, um tanto intimidado por um espaço que não
corresponde àquele que tem no coração (e que vai
levar o nome de "seu"). Assim, só uma canção
consegue romper o nível reverência-eficiência para
nos transportar para terreno instável: "Sinal Fechado".
Background histórico-político sobre a canção
à parte, é um dos momentos que sobram no filme. Assim como
o relato da primeira execução de "Foi um Rio Que Passou
em Minha Vida" na concentração antes e depois do desfile
da Portela. Momentos mágicos contados com magia por quem viveu.
Entretanto, esses breves momentos não são suficientes para
encher de magia o próprio filme, bastante indiferente no geral
para ser modificado pelo tema que escolheu seguir o samba, Paulinho
da Viola, o tempo, o passado ou a tradição. A distância
escolhida sendo a da reverência protocolar, o gosto acaba saindo,
mas o gozo não sobressai.
Ruy Gardnier
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