Paralelas e Transversais
A Estranha Família de Igby, de Burr Steers
Acontece nas Melhores Famílias, de Fred Schepisi


Igby Goes Down, EUA, 2002
It Runs in the Family, EUA, 2003

A chamada "família disfuncional" tornou-se um dos grandes musts da dramaturgia americana recente, em especial no universo audiovisual (não somente no cinema, mas até mesmo principalmente nas sitcoms da TV). Tratar e colocar a limpo as roupas sujas escondidas durante tanto tempo pelo ideal do american way of life tão radicalmente defendido nos anos 50 e atacado (com outro tom, diga-se) nos anos 60 virou o passatempo predileto, e serve de pretexto para alguns dos mais conservadores (pensemos em Beleza Americana ou no cinema de Todd Solondz), e ao mesmo tempo alguns dos mais interessantes modelos do cinema americano recente (pensemos em Wes Anderson). Separando os dois pólos, uma simples oposição: a descoberta destas "falhas de caráter" na família americana típica é ou não um problema? E, se é, um problema de quem, e causado por quem?

Neste sentido, a palavra "estranha", usada no título brasileiro para o filme de Burr Steers, serve bem como divisor de águas. Num momento, no final de Acontece nas Melhores Famílias, uma mãe em prantos pergunta ao marido porque eles têm filhos tão estranhos. Já em Igby, tal julgamento de valor meio mais por conta dos instintos comerciais dos tradutores, do que do filme em si: o cineasta nunca filma seus objetos como essencialmente "estranhos", pelo contrário – seu filme tenta o tempo todo filmar como normais os comportamentos bastante "antisociais" de seus personagens, seu protagonista em especial. Além da relação temática entre os filmes uma outra coincidência os torna bem interessantes de serem vistos juntos: em ambos o filho mais novo da família é interpretado por um membro da família Culkin, que revela um talento impressionante para gerar crianças-atores para interpretar jovens sem inserção fácil no seio da família.

Durante seus primeiros 2/3, Acontece nas Melhores Famílias se disfarça em um filme muito melhor do que se revelará no já citado final. Mistura a capacidade narrativa do experiente Schepisi, ao colocar em cena algumas linhas de enredo paralelas sem que soem forçadas juntas, ao mesmo tempo em que consegue tirar dos atores e do roteiro a criação de um grande senso de intimidade com os dramas dos personagens. E, mais do que isso, demonstra um autêntico interesse nos problemas de relacionamento entre gerações e entre os sexos, sempre com um tom bem pouco "culpabilizador" e cheio de um ácido humor especialmente incorporado por Kirk Douglas, que sempre se mostrou extremamente auto-irônico com sua condição pós-derrame cerebral. Neste clima que o filme segue por um bom tempo, conseguindo alguns momentos realmente preciosos, como as cenas em que Douglas lida com a perda da esposa em pequenos gestos, como a retirada do prato dela da mesa do rerstaurante que frequentavem ou a reconstituição do espaço físico da companheira de cama pelo uso de travesseiros.

Só que, se falamos dos 2/3, é porque certamente teremos o terço final, onde percebemos o projeto que de fato está por detrás do filme. Para os que não sabem, o filme é estrelado não apenas por Kirk Douglas interpretando um idoso lidando, entre outras coisas, com seu derrame, mas também com Michael Douglas interpretando o filho dele, que tem problemas de fidelidade matrimonial, e com Cameron Douglas (filho de Michael) interpretando seu neto, que tem "problemas com drogas". Todas estas são linhas óbvias de contato dos personagens com a imagem dos Douglas na vida real (o único não-Douglas a ser colocado na árvore genalógica do filme é Rory Culkin), e se até um certo ponto esta estranha ficção-real parece ter função quase exorcizante, percebemos no final que o que os Douglas realmente querem com este filme é passar para todos nós sua lição de vida sobre a vida em família. E aí o filme fica francamente constrangedor: tudo se passa numa longa sequência final, que se refere a uma noite na vida dos personagens, num daqueles casos de "noite que resolve todos os dramas" onde tudo que estava discreto e sutil na trama se torna exagerado e caricato, onde os personagens que cometem seus deslizes devem pagar por eles, etc. Tudo que parecia autêntico carinho pelo caráter disfuncional desta família se torna repentinamente louvação a um ideal familiar que faça com que os envolvidos possam "superar suas falhas" e entrar em paz com os seus semelhantes e expiar suas culpas. E isso, não se pode deixar de dizer, acaba sendo o mesmo que tacar uma pá de cal nos melhores momentos do filme até então, porque vemos que eles eram só um "golpe de roteiro" para esta virada final. É uma pena, pois se Schepisi e os Douglas pareciam até então deliciosamente dispostos a se permitirem uma gostosa risada sobre as estranhezas da vida em família, sua disposição final recai mais para as lágrimas e tudo que há de mais "uplifting" e, por consequente, conservador no seu "bom-mocismo".

"Bom mocismo" este que não dá as caras em Igby nem por um segundo: o filme abre com dois jovens irmão assassinando a própria mãe, e será com um deles que a narrativa pedirá nossa completa adesão em seguida. Igby é menos um jovem-problema do que um jovem deslocado, que se sente absolutamente incapaz de identificação com seus parentes, mas ainda assim possui relações com eles (especialmente com o tio e com o irmão) que nunca são simples ou óbvias. Este deslocamento, que poderia ser simples "modismo muderno" é muito bem explicado pela mãe num certo momento: "Sua geração foi um ato de animosidade, porque sua vida não seria também?" Ou seja, Igby é menos um rebelde sem causa do que um autêntico "órfão espiritual", por assim dizer.

A filmagem de suas desventuras por Steers bebe bastante, é inegável, do cinema de Wes Anderson, e seus personagens acima do tom naturalista (no que alguns atores se saem muito bem, como Jell Goldblum, e outros bem menos, como Susan Sarandon). No entanto, mais do que golpes de roteiro ou estilo, o contato parece se dar mesmo é pelo carinho com que são apresentadas aquelas figuras tão perto do ridículo quanto do emocionante. É especialmente indicativo do olhar diferenciado de um Steers para o acima visto em Schepisi olharmos para o tratamento dado a temas como sexo e drogas nos filmes. As cenas entre Igby e suas musas (interpretada com extrema graça por Clare Danes e Amanda Peet) são sempre cheias de uma sexy melancolia, enquanto as drogas nunca surgem como "pecados" e sim como elementos comuns a todos os personagens envolvidos.

Duas cenas em especial mostram que Steers acredita bem mais nos seus personagens do que simplesmente os usa como sintoma de uma crise a ser resolvida, ou mesmo como emblemas de uma certa "modernidade" de linguagem: o abraço sincero e igualmente constrangido entre os dois irmãos, já quase no final, e os murros que Igby dá no corpo da mãe morta, cena especialmente pungente e emocionante. Mais do que tudo, Igby está ao lado do seu personagem principal e não quer que ele encontre um "caminho" no final de sua narrativa, que é apenas uma passagem difícil mas igualmente fascinante nos muito confusos caminhos da vida. Steers não acredita entender mais do que seus personagens alguma lógica superior que deva guiar as pessoas em suas relações – cada um é cada um, sempre. Por não considerar seus personagens "weird" (talvez o mundo seja, mas e daí?), Steers mostra que o que "acontece" independe das melhores famílias, e principalmente, não é lição de vida – é a vida mesmo, e olhe lá.

Eduardo Valente