Pânico 3,
de Wes Craven


Scream 3, EUA, 2000


A falsa (Parker Posey) e a verdadeira (Courteney Cox)
Gale Weathers em Pânico 3 de Wes Craven

Os primeiros momentos de Pânico 3 revelam Cotton Weary como apresentador de um desses lamentáveis programas televisivos à maneira de "Linha Direta". Cotton, no primeiro filme da série, havia sido injustamente preso pelo assassinato da mãe de Sidney Prescott, a heroína da série. No terceiro episódio, ele está com a bola toda: é famoso, rico e adorado pelas mulheres. Isso já nos indica: se Pânico travata das high-schools e sua seqüência acontecia na universidade, a terceira parte (e, supostamente, a última) vai falar do mundo do trabalho.

Essa terceira seqüência da série encontra Sidney Prescott da mesma forma. Se no primeiro filme ela era a última virgem do grupo – a menina que, mesmo com um namorado fixo, tinha medo em se entregar –, nesse ela está refugiada do mundo, com medo de qualquer mosca que venha a entrar na muralha que ela montou para si mesma a fim de fugir dos múltiplos perigos que enfrentou nos outros dois filmes. Wes Craven é, a esse respeito, extremamente fiel à sua lógica de retomada do modelo do conto-de-fadas, só que invertendo sua moral. A série Pânico é toda moldada dessa forma: trata-se de uma fábula sobre responsabilidade, onde é só rompendo os limites da experiência que se poderá saber onde chegar (Sidney tem que perder a virgindade para poder descobrir o assassino em Pânico, Sidney tem que fugir de sua fortaleza para desvendar todo o mistério em Pânico 3). Toda uma lógica antipuritana de Wes Craven. Se é próprio dos contos-de-fadas ensinar o comedimento e o ascetismo, a série Pânico faz o caminho inverso: é preciso se mesclar com o mal para poder extrair dele o bem (em termos cinematográficos, a moral da mentira em Abbas Kiarostami não é muito diferente).

Pânico 3 se abre da forma esperada. Estamos em Hollywood, onde uma poderosa indústria de cinema se prepara para fazer a terceira parte da série Stab (Facada), baseada nos assassinatos de Woodsboro, mas já completamente fictícia. Um agradável sentimento de déja-vu aparece quando nos percebemos diante de um quase remake de O Último Pesadelo de Freddy, também um "último episódio" e também um filme onde o "mal" brota direto da ficção e passa a atacar o mundo real. No primeiro, Freddie Krueger saía do mundo de ficção e passava a atacar os atores que interpretavam os filmes A Hora do Pesadelo, incluído aí o próprio intérprete de Freddie, Robert Englund; em Pânico 3, o assassino toma posse do roteiro do filme e passa a matar os personagens na exata ordem do roteiro. Oportunidade para Wes Craven brincar mais uma vez com uma ordem incomum de realidade no cinema de terror (e que povoava o cinema de Craven muito antes d'A Bruxa de Blair).

Estamos no set de filmagem. Gale Weathers, a repórter sem muito caráter, aparece tão logo vê alguma possibilidade de notícia nos novos assassinatos. Ela entra no set e vê logo Dewey, seu ex-namorado trapalhão, e a atriz que interpretará a própria Gale (aliás, Parker Posey, numa interpretação fascinantemente burlesca, onde o que está em jogo é ser mais Gale Weathers do que a própria Gale Weathers). Essa situação dará cenas fascinantes e numerosas possibilidades: a falsa Gale dando em cima de Dewey para fazer ciúmes para a verdadeira Gale; Dewey ensinando – sem saber que a sua amada está ouvindo – à falsa Gale que, apesar de aparentemente impiedosa, no fundo ela é como um bebê desprotegido; ou então as duas Gales investigando estabanadamente o passado de atriz da mãe de Sidney Prescott. Se David Arquette e Courteney Cox já faziam um par sublime, a chegada de Parker Posey só faz comprovar a caduquice do "três é demais": três é bom demais!

A melhor cena, entretanto, é guardada para o meio do filme: Sidney Prescott, indo atrás da atriz que irá representá-la no cinema, dá de cara com o cenário de sua casa em Woodsboro no primeiro filme. Um fabuloso olhar de temor e fascinação passa por Sidney, que irá – sob pretexto de procurar a "falsa" Sidney – olhar a casa aposento por aposento. O espectador, logo depois, percebe o óbvio: o assassino, tão logo Sidney chegue no cenário de seu quarto, com sua cama e suas lembranças de menina invicta, irá atacar. Aqui, mais uma vez Wes Craven está em casa: Sidney e o assassino "reeditam" a perseguição do primeiro episódio, só que dessa vez nem tudo é igual, e Sidney perceberá isso da pior maneira. Acostumada a andar por sua casa verdadeira, Sidney abre uma porta que não respeita a arquitetura de sua casa e por pouco não se estabaca no chão.

Essa cena, por si só, é plena de sentido para que se interprete toda a relação com o cinema de Wes Craven (que, mais uma vez, encontra ressonâncias nos "truques" da trilogia de Kiarostami e de sua didática do falso): uma casa é uma casa, um cenário é um cenário; cinema é cinema, realidade é realidade e é preciso, sem que se perca com isso o poder de afetar do cinema – sua única realidade –, afirmar isso a cada momento. Não é à toa que emergem no filme discussões acerca da responsabilidade do produtor em lançar filmes violentos, acerca da influência que a violência tem sobre os espectadores, etc. Craven é enfático (em entrevistas, mas igualmente em seus filmes): má-responsabilidade social é levar pouco em conta, é omitir um estado-de-violência na sociedade. Irresponsabilidade social é, segundo a lógica própria da série Pânico e do cinema de Craven, operar a moral puritana de afastamento do perigo, de exclusão do mal.

Ao fim do filme, os sobreviventes encontram-se na casa de Sidney Prescott para ver um filme. (Lembrem-se, no início da série ela detestava filmes de terror!) A casa de Sidney vive rodeada de detectores e alarmes, de fechaduras e trancas, que ela, na primeira cena em que aparece, trata de acionar todos. É um belo dia ensolarado, à maneira de uma bonança pós-tempestade. Sidney já deixara o portão de sua casa de campo aberto. Os convidados chamam Sidney para "assistir a um vídeo". Ela pergunta qual. Eles não respondem. Ela, por um momento, se pergunta se deve ou não fechar a porta. Confiante, deixa a porta aberta e vai ver o filme (que, supomos, é de terror). Moral alcançada, alto e claro: o problema está lá fora, diante de nós, e não adianta nos escondermos dele (lógica Disney) ou escondermos nossos filhos (lógica A Vida É Bela). Solução: só conseguiremos enfrentar o mal quando estivermos diante dele, quando não mais parecer haver separação, quando a única saída possível (e ética) for ver e dar o testemunho do visto. Não é por menos que Wes Craven é um gênio de montagem. Ele sabe fazer terror e sabe que o suspense é menos pelo que se vê do que pelo que não se vê. E sabe que para cada atitude passiva do espectador como voyeur (susto), é preciso uma atitude ativa do espectador como produtor (riso). É aí que o autor de Pânico 3 inverte a ordem do sistema e dá, para além do lugar-comum paranóico do cinema de terror, uma mensagem libertária de crônica social. Assim ele pode, com Galvão e os Novos Baianos, dizer: "Besta é tu/de não viver esse mundo/se não há outro mundo (...) olha só, olha o sol/o Maraca domingo/o perigo nas ruas..."

Ruy Gardnier