Palavra e Utopia,
de Manoel de Oliveira

Palavra e utopia, Portugal, 2000


Uma característica que parece unir de forma incomum as personalidades do diretor Manoel de Oliveira e do padre Antônio Vieira, personagem central de Palavra e utopia, é uma inequívoca sensação de urgência, seja na velocidade com a qual o mestre português vem criando filmes e mais filmes com uma capacidade produtiva incomum para quem já passou dos 90 anos de idade (já foram mais outros três desde o lançamento deste, no festival de Veneza de 2000), seja na força demonstrada pelo sacerdote que atravessou o século XVII tomando posições liberais e humanistas adiante do seu tempo e, vendo aproximar-se o fim da vida, dedicou-se a registrar e tentar publicar suas cartas e sermões, que compõem a matéria prima do filme em questão.

Oliveira se utiliza dos textos deixados por Vieira como fios condutores de Palavra e utopia, retratando momentos de sua vida, organizando uma narrativa que, apesar de se desenvolver em uma certa ordem cronológica, não se encaixa absolutamente na linha dos filmes biográficos tradicionais, que normalmente apresentam uma sucessão de episódios da vida do personagem. Aqui pouco interessam os fatos, mas as palavras, como diz o título, e tais fatos apenas aparecem de forma a contextualizar as palavras. Isto deu ao diretor a oportunidade única de realizar uma fita de época sem que fossem necessárias suntuosas reconstituições, o que concede ao filme uma certa pureza por não procurar entupir o olhar do espectador com perfumarias, dentro de uma linha alternativa de cinema histórico na qual também podemos incluir A inglesa e o duque de Eric Rohmer (2001) que atinge os mesmos objetivos por caminhos totalmente diversos.

O próprio diretor afirma ter feito uso em Palavra e utopia de "um estilo reduzido ao essencial", e por isso entende-se um rigor quase franciscano na construção de planos e movimentos de câmera. Dentro de uma estética que muito se aproxima do cinema japonês clássico (Ozu, Mizoguchi), o filme é composto quase na totalidade por longos planos sequência nos quais a câmera pouco se movimenta, o que fornece ao espectador a chance de uma fruição bastante íntima das cartas e sermões do padre Vieira, sem que esta economia de recursos de forma alguma se configure em tédio ou monotonia. Pelo contrário, instiga e fascina ao retratar de forma apaixonada a riqueza da prosa daquele que, mesmo preso às amarras do sacerdócio, da inquisição e da servidão a um estado colonialista, sempre se manifestou contra a escravidão (defendeu negros e índios), e contra a corrupção e burocracia das máquinas estatais e eclesiásticas. Vale aqui destacar, entre uma uniformidade de belíssimas sequências, aquela próxima do final durante a qual Vieira apresenta suas propostas (que ao fim serão negadas) a um conselho de sacerdotes, filmado como uma santa-ceia disposta de costas.

Para que a riqueza dos propósitos de Manoel de Oliveira fosse plenamente alcançada, foi fundamental a participação dos atores que viveram o padre Vieira nos diversos momentos de sua vida. É certo que Ricardo Trepa (neto do diretor, o Vieira jovem) pouco contribui, mas também pouco aparece. Já Luís Miguel Cintra confere na medida certa a eloquência, o vigor e a paixão do Vieira maduro, que enfrenta os colonizadores do Brasil e a inquisição. Mas é mesmo o nosso Lima Duarte, que interpreta o padre na velhice, quem mais impressiona ao retratar o desencanto e a decadência física do personagem, declamando seus sermões de maneira por vezes arrebatadora. Num trabalho de composição infinitamente superior àqueles que vem apresentando na TV por muitos anos, limitados a tipificações repetitivas, Lima nos faz refletir que sua rica persona cinematográfica poderia ser muitíssimo bem aproveitada, o que não ocorria desde Sargento Getúlio (1983).

Essencial e indispensável, Palavra e utopia reflete mais um belíssimo momento na obra de Manoel de Oliveira, diretor que possui uma trajetória única e ainda não plenamente reconhecida no panorama mundial, por navegar na contracorrente de padrões impostos, seja pelo cinema comercial, seja pelas vias mais óbvias do chamado cinema de arte, mas que, ao se aproximar de seu centenário, se encontra possuído de um desejo de filmar o que lhe dá na telha, sem procurar confrontar-se ou se encaixar em determinado estilo. E, como neste caso, utilizar-se da palavra para concretizar a utopia de um cinema rico e extremamente pessoal.

Gilberto Silva Jr.