O Vento nos Levará,
de Abbas Kiarostami


Le Vent nous Emportera, Irã/França, 1999

O Vento nos Levará começa como um filme de Kiarostami, ou melhor, como aquilo que costuma ser um dos filmes de Kiarostami: um carro, a paisagem minimalista dos campos do interior do Irã, muita poeira saindo, e o motorista parando o carro para fazer perguntas aos moradores locais. Já vimos isso em Vida e Nada Mais, já vimos isso em O Gosto da Cereja. Entretanto, uma coisa parece nova. Não se trata mais da busca solitária de um homem, mas, como logo veremos, uma exploração de um grupo de homens, uma equipe de filmagem que deve encontrar um vilarejo escondido. O espectador, como os membros dessa aldeia, será inicialmente privado de saber o que exatamente eles vão lá fazer. Depois, aos poucos, pelas sucessivas perguntas em torno da morte de uma anciã e de um estranho ritual que acontece após a morte de uma dessas mulheres, passa-se a ter uma vaga idéia do que esses homens da cidade, com ritmo da cidade, estão fazendo parados, estagnados, quase sempre fora de plano, enquanto o personagem principal, sempre o mesmo herói kiarostamiano, faz suas peregrinações para descobrir todas as informações sobre a aldeia, sobre a anciã e, principalmente, para estabelecer contato com Teerã, o que só pode ser feito através de um telefone celular que só pega no ponto mais alto da redondeza.

Até então, viu-se que O Vento Nos Levará não difere fundamentalmente de nenhuma das outras obras-primas do diretor. Um mesmo tema recorrente, um mesmo personagem recorrente, a mesma paisagem recorrente... O que faz então que esse filme seja extraordinário? Porque O Vento nos Levará é sem dúvida um filme extraordinário. A resposta poderia se dividir em duas. A primeira encontraria nos filmes de Kiarostami um mesmo eco, uma mesma persistência no modo de filmar que é em si extraordinária: a maneira como a luz povoa seus filmes, a forma com que a realidade é imantada, como a terra é filmada, como os personagens não são meros fantoches, mas estão relocados permanentemente à terra, são filmados indissociavelmente ao chão que eles pisam e ao céu que os protege. Assistir a um filme de Abbas Kiarostami é por si só entrar num mundo depurado, um documental que entretanto parece ter saído por mágica inteiro da cabeça do diretor, tamanha é a sensação de que até o sol fez questão de obedecer as ordens da encenação. Mas ao mesmo tempo, a segunda resposta saberia ver o que há de diferente em O Vento nos Levará em relação com a obra anterior de Kiarostami. Certamente o brasileiro não está ainda inteirado da obra completa do diretor. Até agora, dele só nos vieram os longas produzidos depois de Close-Up, de 1990, e Onde Está a Casa do Meu Amigo?, o que nos exclui de quatro longas-metragens e de uma infinidade de curtas-metragens, alguns deles considerados obras-primas por quem viu. Mas O Vento nos Levará já é uma obra de maturidade, a primeira obra depois da consagração mundial que foi a vitória em Cannes, a primeira vez que um "filme de Kiarostami" é um acontecimento para além de um fechado círculo de aficcionados e apaixonados. E todo esse glamour fatalmente – e quando se diz que é fatalmente, não é apenas força de expressão – povoa a história, pela negativa. Trata-se, e logo perceberemos isso, de uma equipe de televisão que está numa aldeia para esperar a morte de uma anciã porque eles querem filmar o ritual que transcorrerá logo após sua morte. O que coloca o herói do filme numa posição ética complicada, a de um urubu à espera de sua carniça. Mas Kiarostami sabe fazer mais complicado que isso.

Quem já viu um filme de Kiarostami sabe que sempre há um tema principal – nesse caso, as necessidades práticas determinarem uma relação pouco cuidadosa com a morte dos outros – e todos os sub-temas que têm a ver imediatamente ou secundariamente com o tema principal, o que cria, a despeito de todas as filmagens feitas em externas e com luz natural, um estranho sentimento de prisão mental, de uma dúvida moral onipresente. Huis-clos a céu aberto, uma estranha dissonância que cria um ambiente absurdamente penetrante e único no cinema contemporâneo.

Se o propósito com que a equipe de tv aparece naquela aldeia já os coloca de imediato na pouco louvável posição de urubus ou de papa-defuntos, a situação piora à medida que a cidade respeita esse grupo enquanto eles só têm com as pessoas desse povoado uma relação exploratória: querem leite, morangos, mas não parecem fazer nada além de descansar fora do plano, esperando como predadores que a morte se realize. Acresce a isso a viagem do herói: ele foi para esse vilarejo a trabalho, mas deixou em casa sua mãe adoentada, com uma doença que a colocava em risco de vida. Ele espera que uma das velhas sobreviva, e que outra morra, mas isso tudo para atender às necessidades práticas de seu trabalho. O percurso desse herói será então o de purificar-se da reificação social que tenta encarar a morte apenas como um "trabalho", deixar de ter uma relação puramente exploratória com as pessoas que o rodeiam.

Glorioso trunfo o de transformar toda a natureza em chamados de vida e de morte! Se em Viagem à Itália Rossellini transformava um percurso de férias no diagnóstico de um possível fim de casamento utilizando uma ida ao museu como metáfóra da morte por vir, O Vento nos Levará bebe da mesma fonte, e transforma todo o ambiente local em signos de vida e de morte. Com o propósito de falar ao telefone celular, o herói do filme precisa ir de carro até o ponto mais alto do vilarejo, onde coincidentemente fica o cemitério local. Não se trata de um local altamente estriado como nos cemitérios ocidentais. Apenas um conjunto de pedras, excelentemente fincadas ao chão. Isso torna tudo mais impressionante, porque de primeira não se percebe que se está diante de um cemitério mas quando, aos poucos, se vê a enorme quantidade de pedras ao chão (ver foto), o efeito visual surge de um lance só, intenso. Se o chão do monte recende a morte, uma árvore frondosa, de copa generosa, nos remete de volta à vida. E da mesma forma que há nesse mesmo monte um homem (que jamais aparece na tela) cavando um buraco profundo – mais uma vez a insígnia da morte –, volta e meia aparece a sua mulher para lhe trazer comida – mais um símbolo de vida.

Mas como o filme é todo o caminho da morte para a vida, é a morte que invade todos os momentos de O Vento nos Levará. A mulher que não morre encontrará na natureza similares como um osso (que o "engenheiro", como o povoado chama o herói do filme, carregará consigo até o fim do filme) e principalmente uma tartaruga, responsável por um dos momentos mais radiantes da história: contrariado pelas ligações que recebe da família e principalmente pelas constantes reclamações de seus produtores em Teerã ao celular, que querem a velha morta o mais rápido possível, o herói vê caminhando pela grama uma tartaruga e, sem dó, aplica-lhe um chute na casca. Pouco adianta: ela fica de cabeça para baixo, mas logo ela desencolhe, movimenta-se e coloca-se de novo em posição correta para continuar seu caminho. Preocupação constante na carreira de Kiarostami e até nome de um de seus filmes, a vida continua... Porque como em Gosto da Cereja, trata-se de um homem povoado de morte por todos os lados (família, trabalho e até posição existencial), mas que, ao contrário, se rende às belezas do mundo, ao gosto da cereja. Mesmo que no fundo o tema dos filmes de Kiarostami seja sempre o mesmo – a afirmação da necessidade de permanecer vivo e bem vivo –, a injeção de vitalidade e de beleza ética e cinematográfica é sempre diferente. Como no episódio do osso: conversando com o homem que cava o buraco (na tela só vemos o buraco), numa certa hora vemos sair do buraco um osso, certamente um fêmur. O engenheiro segura bem o fêmur, faz a medição com sua própria coxa e, sabendo-se em intimidade com o que esse osso representa (afinal, ele está na aldeia para presenciar uma morte), guarda-o para abandoná-lo só ao fim do filme, tendo recuperado seu elo primordial com a vida.

E esse elo, buscado desde o início do filme, só acontece quando o engenheiro vai em busca do médico das redondezas. Viajando de moto e não mais de carro, filmando sempre em planos muito abertos onde o mais importante é a paisagem, o médico representa o mesmo que o homem que deveria acordar o herói de Gosto da Cereja: um chamado à beleza da vida, um homem que admira o belo mas que também deixa o "não-belo" se expressar (ele respeita a morte e deixa o engenheiro fumar); que recusa a especialização porque "se fosse um especialista, deixaria de me importar com o resto do corpo".

Se todos os momentos do filme têm uma significação bastante exata no que diz respeito à vida e à morte, há entretanto uma figura majoritária da vida: trata-se da noiva do homem que está cavando. Ela é verdadeiramente o que encarna o mistério da vida. Ela é perscrutada de longe, jamais chega perto do engenheiro. Ao contrário da morte d'O Sétimo Selo, ela é uma figura misteriosa que esbanja vida. E qual não é a diferença entre a vida temerosa e vacilante dos filmes de Bergman em relação à vida radiante de Kiarostami. O mistério em Kiarostami nunca é o que a gente não conhece por estar longe, mas sempre por estar perto demais. Como na cena em que o engenheiro finalmente encontra um pretexto para falar com ela: ele precisa de leite e ela o acompanha até o porão, onde ficam as vacas. Esse recinto não é nada iluminado, então é preciso de um lampião para mostrar o caminho. Kiarostami sabe respeitar a intimidade da cena, e não traz a essa cena nenhuma luz externa. Dessa forma, só vemos parte do corpo da moça, jamais o rosto. E assim, com pouquíssima coisa visível na tela, o engenheiro começa a recitar os versos de uma poetisa: "e tu, verdejante,/ estendes tuas mãos – esssas lembranças ardentes –/ sobre minhas mãos apaixonadas/ e confias teus lábios, cheios que são do calor da vida,/ às carícias dos meus lábios apaixonados/ o vento nos levará!/ o vento nos levará!" Momento místico do cinema contemporâneo, uma das seqüências mais inexplicavelmente belas, misteriosas como a vida, do cinema inteiro! Lembrado da poesia que é a vida, o engenheiro finalmente poderá converter-se em senhor da vida e da morte: comprará remédios para a mulher que deve morrer, acorrerá para salvar o homem que cava de um inesperado desabamento, ao mesmo tempo que jogará fora o osso e, morta a senhora que tanto atrasava sua permanência na cidade, umas poucas fotos bastam para que ele possa sair daquele lugar revigorado e espantado com o mistério que faz a vida. O próprio Kiarostami, senhor da vida e da morte em seus filmes, enleva o espectador pela beleza de tudo que mostra e, como em todo fim de seus filmes, sobe uma música melodiosa que nos garante que, também a nós, o vento nos levará.

Ruy Gardnier