O
Último Portal,
de Roman Polanski
The Ninth Gate, França/Espanha,
2000
Johnny
Depp e Emanuelle Seigner em O Último Portal
Sempre que um dos grandes cineastas
vai realizar um novo filme, a fronteira que separa um bom filme de uma
obra prima às vezes é muito tênue. Não há
dúvidas de que Polanski é um dos grandes cineastas vivos.
Então é com grande interesse que se assiste a O Último
Portal, mas, embora o material apresentado seja sem dúvida
um filme instigante e desbravador fica a sensação de que
algo não saiu a contendo para que se tornasse o clássico
instantâneo que poderia.
Filmado com extremo domínio da linguagem
e muita inteligência, o filme é na verdade um jogo proposto,
mas um jogo de ramificações no mínimo soturnas. No
meio do filme, um personagem diz: "Someone is playing a game..." (alguém
está jogando conosco). Pois bem, é mais que claro quem:
ele, o diretor, Polanski. A aposta dele é no poder do criador de
jogar com seus personagens e com o espectador a seu bel prazer. Neste
sentido o filme inteiro é uma metáfora: o cineasta como
Deus (ou Demônio, o complemento deste), todo poderoso pelo menos
durante duas horas. As regras do jogo pertencem só a ele. E Polanski
sabe jogar...
E o faz com um uso impressionante das locações,
todas mais que adequadas, estupendas. O faz com uma decoração
de interiores, especialmente as bibliotecas, que a fotografia trata com
suas cromatizações e movimentos como templos, como locais
atemporais. Se pensarmos bem o filme é também sobre o poder
e a adoração dos livros. E são inúmeras as
bibliotecas, cada uma diferente: a coleção da primeira cena,
a do livreiro, a de Balkan, a biblioteca pública onde encontra
Seigner, a dos gêmeos, a de Fargas, a de Kessler. Com o castelo
St. Martin e a ruína no final formam nove locais, um dos possíveis
jogos de espelhos e significados (o título original, não
custa lembra, é "O Nono Portal"). Destaque-se ainda a
câmera, claro. O primeiro plano do filme é brilhante, um
suicídio descrito com dois movimentos de câmera. Os travellings
têm a elegância e o terror perfeitos. Polanski usa ainda de
tiradas e referências, de um humor quase "camp".
Johnny Depp faz quase um complemento do seu
personagem em Sleepy Hollow, incredulamente carregado por forças
superiores que ele negará enquanto puder. Enquanto Emmanuelle Seigner
não interpreta, mas isso não tem nada de errado. Polanski
a usa (assim como casou com ela por isso provavelmente) pelo que a persona
dela, sua physique emana... Ela de fato é sobrehumana, seus olhos
são de outro mundo. Funciona às mil maravilhas no filme
sua face quase inexistente como deve ser a de um ser de outro plano...
O que não duvido que ela seja!! Todas as outras interpretações
de personagens principais (Frank Langella, Lena Olin), não alcançam
o tom entre o real e o bizarro que Depp consegue, e ficam apenas estrelas
de Hollywood super maquiadas fazendo caretas e querendo ser "estranhas"...
Langella por exemplo é muito mais interessante como voz do além
no telefone do que como ensandecido na ruína. Da mesma forma, Olin,
que como sobrehumana é interessantíssima (a cena da sedução
é linda!!), como chefe de culto é brochante.Os atores de
uma cena só (como os gêmeos, a aleijada, o livreiro, o velho
recluso) são muito mais críveis até mesmo por serem
tão incríveis...
No entanto o grande problema do filme, aquela
tal fronteira lá de cima que o impede de ser inscrito nas obras
primas, é a constante busca do tom do filme, em qual diapasão
ele toca. Neste sentido, o melhor é o final, pois mexe com o bizarro
mais do que o resto do filme todo. Ali sim Polanski aposta no suprarreal,
no não conclusivo, no imaginado, no não explicado. Há
por exemplo um plano em que assumimos o ponto de vista de Depp preso no
chão, a câmera baixa, nós de frente para o Demônio...
Nos melhores trabalhos de Polanski (O Inquilino, O Bebê
de Rosemary, Repulsa ao Sexo), o mergulho na loucura, nos limites
da mente e do sobrenatural, era gradual, porém total. Aqui há
um excesso de explicações na parte central do filme. Uma
falação redutora e que tira boa parte do potencial assombroso
do filme. Quanto mais ele explica, mais reduz. E pior, não explica
mesmo, então fica num meio termo que parece que um produtor falou:
ah não, Roman, isso é muito estranho, bota aí umas
explicações vai!! Acaba que o filme perde parte do seu potencial
assustador e onírico em busca de uma trama de engajamento em forma
de thriller que é o ponto mais fraco de todos. Não por acaso
o mais forte são os personagens que ninguém contextualiza:
os gêmeos, Seigner, o negão loiro de bigode preto, Kessler,
estes sim ficam no subconsciente como seres fantásticos e sobrehumanos.
Polanski constrói seu jogo de espelhos
múltiplos, convida o espectador e o leva a uma viagem sensorial
cada vez mais rara no cinema atual. É uma pena que ele mesmo não
mergulhe de cabeça, podendo fazer deste um filme ainda mais ressonante
do que o interessantíssimo resultado que tem.
Eduardo Valente
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