Os Outros,
de Alejandro Amenábar

The others, EUA/Espanha, 2001


É engraçado como às vezes se acerta por vias erradas. O jornalismo cultural, cada vez mais apressado e necessitado de leads e sacadas "geniais", resolveu comparar este novo filme com O Sexto Sentido. Isso, claro, porque ambos transitam em torno do tema dos mortos e sua relação com os vivos, e acima de tudo, porque possuem uma surpresa no final. Nada mais banal do que usar um artifício narrativo e uma escolha de tema para colocar lado a lado dois trabalhos. Mas o fato é que atiraram no que viram, mas acertaram no que não viram. Porque existe sim uma semelhança fortíssima entre os dois filmes, mas que está longe de ser esta tão óbvia. O que os torna tão parecidos é que no fundo tratam do mesmo tema: a educação de um olhar.

Para ampliar este ou qualquer outro tema, aliás, é necessário tocar na tal surpresa final como dado conhecido. Portanto, que fique aqui o aviso: como nós na Contracampo gostamos de pensar a crítica como um complemento ao ato de ver o filme, e não como uma "dica de programa", tudo que está dentro do filme pode, e deve, ser dissecado. Portanto, se você leitor só queria saber se o filme é bom: Os Outros é ótimo. Volte para ler o resto, depois de ver.

Seguindo, então: no caso do Sexto Sentido, toda uma trama era montada para disfarçar que o que assistíamos era o processo da perda da inocência do olhar de uma criança. Ou seja, a passagem da infância para a idade adulta pelo processo do conhecimento que torna o olhar algo menos fantástico e mais consciente. Passando da dimensão do medo para a da compreensão. Nesta passagem, algo se perde, sem dúvida, pois aquele medo original era também a tal inocência, e como tal possui uma pureza que não se pode recuperar. Porém, trata-se de operação necessária para se poder continuar na vida.

No caso de Os Outros trata-se de outro tipo de adequação à nova realidade. Ao invés da passagem da infância para a vida adulta, tratamos aqui da passagem suprema da existência humana: do mundo dos vivos para o mundo dos mortos. Amenábar nos propõe que esta passagem é dolorosa como a outra citada, e como tal, neste processo de conscientização, algo se perde. Mas é necessário para que possamos seguir para o próximo estágio.

Ambos os filmes são, portanto, ensaios altamente rigorosos em torno de um tema completamente abstrato. Mas o que eles possuem de mais interessante como fenômeno cinematográfico é a capacidade de serem exatamente isto, sem perder o atrativo de produto para a platéia. E fazem isso por jogar com o próprio olhar infantil e inconsciente típico do espectador de cinema, que está disposto a jogar fora sua "consciência" de que assiste a um teatro de sombras completamente ilusório, e sente medo como se estivesse sob risco pessoal. Este é o primeiro atrativo dos filmes. O segundo é o fascínio e a ignorância que o ser humano possui com relação ao fenômeno da morte, e em especial com o que se segue a ela. Ambos jogam com estas dúvidas para criar um pacote fascinante de entretenimento e fé.

Claro que há um terceiro elemento importantíssimo, que se já estava presente no filme de M. Night Shyamalan, neste aqui é levado ao extremo: a capacidade de seus diretores como criadores de imagens e de climas. Amenábar nos oferece um autêntico banquete audiovisual de tal domínio do espectador que impressiona. A começar pela fotografia cheia de jogos de claro e escuro, ampliada no seu alcance pelo golpe de ter que manter as cortinas da casa fechadas. Ele esculpe com a luz cada plano do seu filme, dando poder singular a cada imagem. Além disso, o fato dele ser o compositor da trilha original dá uma idéia de sua preocupação com o som.

Discípulo da escola dos melhores filmes de horror, ele sabe ainda a importância da escalação do elenco. Assim, sua composição entre os empregados da casa, o marido e as crianças lembram o trabalho de Tim Burton em A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça na maestria da escalação dos atores, tanto pelo físico quanto pelas interpretações. Impressionam em especial as duas crianças que interpretam os filhos e roubam todas as cenas. Mas, o filme é mesmo de Nicole Kidman, que consegue impor a sua personagem um ar constantemente tenso, à beira de um ataque de nervos, que é tão central quanto os movimentos de câmera e os acordes da música para deixar o espectador grudado no que assiste.

Quanto ao tão discutido roteiro, à surpresa final em si, é no fundo uma besteira. Qualquer pessoa com um pouco de bom senso descobre qual é antes mesmo da metade do filme. Mas, isso não tem a menor importância na fruição do filme, pelo contrário, saber do que o filme no fundo trata só aumenta o prazer de acompanhar a carpintaria brilhante do seu diretor, jogando com a platéia o tempo todo. Amenábar parece ser um espanhol reensinando o cinema americano a acreditar no poder de suas imagens e sons, no domínio da imagem cinematográfica sobre o cérebro do espectador, entregue. E, no final das contas, por menor que seja a importância da tal virada dentro da grandiosidade estilística e da discussão do filme sobre o olhar, ela permite pelo menos uma sacada genial: trata-se de um filme de assombração onde os fantasmas estão vivos, muito vivos. Trata-se, de fato, não de um filme de fantasmas, mas de um filme de "gente viva". Alguém lembrou de Beetlejuice?

Para terminar, duas sugestões de leitura do mesmo site: no sempre divertidíssimo Metaphilm há duas interpretações originalíssimas dos filmes citados aqui, que vale a olhada.

Os Outros: www.metaphilm.com/philms/others.html

O Sexto Sentido: www.metaphilm.com/philms/sixthsense.html

Eduardo Valente