Os Carvoeiros,
de Nigel Noble


Brasil, 1999

Como é que, num primeiro momento, se poderia criticar um filme que se presta a denunciar tamanho absurdo como o trabalho semi-escravo na fabricação de carvão vegetal no interior do Brasil?? Como intenção, não se pode mesmo. Mas como realização, e especialmente como proposta de trabalho o filme deve ser questionado.

Primeiro porque é um filme brasileiro, pago com dinheiro das leis de incentivo, sobre um assunto brasileiro, e dirigido por um inglês. O produtor e roteirista se justificou alegando que "um diretor brasileiro ia querer ficar tendo muitas idéias novas e fugir do controle do que deveria ser o projeto", o que além do absurdo de colocar todos os diretores brasileiros numa vala comum de incompetência e falta de profissionalismo, indica uma tendência perigosa num documentário que é ter tão fechado um tema, um formato e uma tese de forma que alguém possa "desvirtuá-la". Planejar é necessário em qualquer filme, principalmente talvez no documentário, mas esta forma de se colocar indica um fechamento a novos fatos ou considerações que surjam da filmagem, o que é um absurdo.

Isso acaba refletido no filme, pois ele parece tão estudado e tão estrangeiro a nós mesmos. Os Carvoeiros tenta criar belas imagens com trilha sonora catártica, o que deve agradar muito o público ao qual parece se direcionar, ou seja, os estrangeiros como se pode ver com sua inscrição no Sundance e tentativa de indicação ao Oscar. Mas será que, tendo visto Santo Forte tão recentemente, esta é a forma mais honesta de se registrar uma realidade? É um filme feito a partir de um ensaio fotográfico, e isso reflete no filme claramente pela sua preocupação plástica infinitamente maior que a humana. Ao invés de ouvirmos a fundo os personagens e o que eles têm a dizer, fica mais bonito e chocante (lembrando que beleza, exotismo e miséria fazem a combinação favorita de Brasil para os olhos de fora) mostrá-los trabalhando em contraluz no meio de um fog intenso.

A parte visual é a contribuição do inglês, lógico, pois isso se pode fazer com qualquer assunto sem compreendê-lo. As entrevistas são feitas pelo próprio fotógrafo do ensaio, direto em português, ou seja, o diretor do filme não influi no que é discutido. Quando o diretor não entende o que se diz, está claro que isso não é o mais importante no filme, mas que ele está lá apenas para filmar o que o fotógrafo fotografou e o roteirista viu. Será mesmo que nenhum brasileiro saberia fazer isso? E se não, quem poderia culpá-lo?

Afinal, em Os Carvoeiros o espectador brasileiro não verá ou saberá nada de novo sobre o trabalho semi-escravo rural brasileiro pois os realizadores não se propõe a isso. O pouco de novo e surpreendente que sai do filme vem das palavras dos carvoeiros, e portanto de algo que o "diretor" não compreendeu!! Tem algo de muito errado nisso tudo. A palavra dos envolvidos é reduzida e pouco aproveitada e aprofundada, ficando no geral no nível do clichê-apresentação da situação. Isso deve ter dois motivos: primeiro que estrangeiro não gosta de ler legenda, e segundo que se quer mesmo apresentar uma situação para os olhos virgens e sedentos dos estrangeiros. Verá uma introdução digna de uma situação indigna que, quem quer que não viva em Marte ou já tenha visto uma reportagem só no Jornal Nacional (com estrutura semelhante) já conhece. Mas, onde está o fato novo, a revelação, o inesperado?? Não está lá, pois por ter sido feito por um estranho àquela situação, ele só pode enxergar o mais óbvio, o clichê. Seria como eu fazendo um filme sobre a hora do chá e sua importância. Acho ótimo que se faça o filme para exibir lá fora e introduzir uma situação que precisa sempre ser denunciada. Mas isso deveria ser feito (um filme de estrangeiro PARA estrangeiro) com dinheiro estrangeiro, da BBC ou seja lá de quem for. É difícil falar que não se gosta de um filme com um tema tão pungente, e a bem da verdade eu prefiro algum filme do que nenhum filme sobre este tema num país tão desligado e esquecido. Mas, se é um bom recado para a OMC lembrando que antes (ou no mínimo ao mesmo tempo) de se discutir tanto a globalização dos mercados, tem gente precisando descobrir como fazer para comer ou crianças trabalhando semi-escravizadas para se produzir bens de consumo baratos, por outro lado não acrescenta muito internamente ao público a que se destinaria, nós, os brasileiros.

Eduardo Valente