O
Rei Está Vivo (Dogma 4),
de Kristian Levring
The King Is Alive (Dogme
4), Dinamarca, 2000
Será mesmo
O Rei Está Vivo um filme Dogma? Vejamos: filmado em câmera
digital, só locações "naturais", som direto
e nada de trilha sonora, câmera na mão... Ao que parece,
está tudo em ordem, inclusive o selo garantindo a "autenticidade"
da obra. Ao que parece, todos os signos exteriores da suposta inovação
e de um cinema de essência (contra um cinema dominante da superfície
e da maquiagem) estão na tela para quem quiser ver. E ao que parece,
está tudo muito em ordem, até mais do que se desejaria:
o Dogma, que veio bagunçar o coreto do cinema de uma nota só,
com O Rei Está Vivo dá todos os sinais que fechou
seu ciclo de relevância e virou academia. Pois no terreno da magia
e da liberdade de filmar, a fita de Kristian Levring beira a mais completa
indigência – está ali na tela, para quem quiser ver, tanto
quanto a câmera tremida. E em primeiro lugar porque o diretor cai
na própria armadilha que criou: neste Rei sem muita graça,
toda a "profundidade" desejada é forjada por uma textura
que não encontra em momento algum o correspondente necessário
no nível das idéias.
Ou não? O que
nos diz o Rei Lear, mas que o filme é de uma incompetência
flagrante (em todos os aspectos) em revelar, apesar de todo o verniz intelectualóide?
A majestade, se é que ela existe, não está na coroa:
traído, o rei é expulso da corte e, perdido numa noite de
chuva, sozinho, precisa provar a si mesmo que é de fato aquilo
que acreditava (mas na verdade só aparentava) ser. Tudo muito funcional,
é verdade: não é mais ou menos a mesma coisa que
acontece com os personagens do filme, que se vêem de repente perdidos
no meio de um deserto, sem todos os símbolos que a sociedade constrói
em torno de si e que, mal ou bem, "formam" aquelas pessoas?
No mais, não é este o voto de castidade do Dogma?, um cinema
livre de todo aparato industrial, de tudo aquilo que lhe é supérfluo
e que tinha contribuído pra desvirtuar a verdadeira essência
dos filmes? Então, por que O Rei Está Vivo, que deveria
ser uma bela alegoria do próprio Dogma, acaba por se mostrar de
um conservantismo assustador para quem até bem pouco se pretendia
revolucionário?
Porque, como o diretor
tenta nos dizer sem muito sucesso nem tesão, as coisas não
têm um valor em si, a validade está sim é no uso que
se faz e se confere a elas. Porque fazer cinema não é seguir
receita de bolo: o importante é o como, não o quê;
é a poesia e a invenção, não a temática.
Porque, se a princípio o filme seria um manifesto pragmático,
não há nada disso na tela, muito pelo contrário:
Levring apela para recursos dramáticos surradíssimos, inscreve
seus personagens em clichês psicologizantes de quinta categoria
(a boazuda-vagaba, o casal-em-crise, o machão-violento e por aí
vai) e clímax narrativos os mais bobocas possíveis, de tão
sem imaginação. Nada mais conservador (e estupidamente empolado)
do que esse desejo de alta cultura e de "profundidade" (sempre
frustrada) que precisa declamar Shakespeare a torto e a direito. Os
Idiotas, filme muito mais "simples" e pé no chão,
sem pretensões estúpidas tipo vejam-só-como-sou-espirituoso,
tem muito mais a dizer, gostando ele ou não. E nada mais burocrático
do que essa visão "alternativa", supostamente inteligente,
e que precisa se encher de truques de roteiro "bem bolados"
– como o velhinho que mora no vilarejo onde os turistas se alojam.
Por tudo isto, se
em tese O Rei Está Vivo é um filme Dogma, na prática
– e apesar do que tudo indica – ele é tão convencional,
chato e empolado quanto qualquer adaptação literária
careta ou um filme de época inglês cheio de salamaleques
supérfluos e irritantes. Só faltou os sorrisinhos canastrões
por cima das xícaras de chá para fechar a conta.
Juliano Tosi
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