Ônibus
174,
de José Padilha
Brasil,
2002
Deveríamos ir àquela velha questão? O que diria um
extra-terrestre se desembarcasse no planeta? O que diria ele do filme?
Bem, talvez a questão
esteja velha demais. O mais triste que se pode notar sobre o filme Ônibus
174 em si é que todo comentário parecerá banal,
repetitivo. O óbvio se impõe: a situação Ônibus
174, a equação que origina tudo, essa está aí,
na nossa cara, todos os dias para a gente ver. Não importa muito
o que o extra-terrestre acharia do filme, nem da realidade que o originou.
Nem tampouco o mais importante será a visão de realidade
que tem o filme. Essa realidade é que importa – por trás
de todo o discurso, por trás de todo o espetáculo, por trás
de todo o processo de investigação, é ela quem salta
à frente em importância para nós não-extra-terrestres.
Em outros filmes a construção do discurso documental
se faz totalmente presente e crucial na narrativa – mas em Ônibus
174 a preocupação é com a investigação
simples. A construção dramática cabe ao instante
escolhido para documentar, o espetáculo trágico do seqüestro
do ônibus. Isso é mais que cinema.
Ônibus 174,
o filme, sendo bem feito, pensado e estruturado, tem portanto seu maior
mérito em exibir para nós (‘de forma implacável!’,
diria um mais empolgado) uma situação extrema causada por
uma imensa teia de problemas e fragilidades sociais. Da observação
e da investigação dos precedentes do evento central – o
célebre caso do aprisionamento, ao longo de horas a fio, de uma
série de reféns dentro de um ônibus por um bandido,
numa rua central do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro – surge a
pessoa Sandro do Nascimento, personagem central da tragédia, e
descortina-se toda incompetência do tecido social em lidar com a
marginalização de milhares de pessoas desde a infância.
Esse é o tema para nós, brasileiros, para nós, cariocas,
para nós que estamos vivos. Importa alguma coisa o que o extra-terrestre
vai pensar? Ou o que vão pensar de nós mais tarde? Ou a
primeira questão não será sobre a vida que queremos
ter?
Num momento de reviravolta
política como o do final do ano de 2002, Ônibus 174
estampa na nossa cara uma visão triste (e mínima) da imensidão
do buraco em que estamos nos metendo – falamos de crime organizado para
dar rostos ao nosso medo, mas também temos que viver com o crime
desorganizado e sem nada a perder, nós todos estamos vendo ele
se criar. Em gente sem emprego, sem escolaridade, sem nenhuma estrutura
– ao deus-dará. E nos perguntamos por que será que se tornam
ocasionalmente violentos.
Tudo isso nos é
dito e repisado pelos depoentes do filme. Torna-se tema central também
a desestruturação (e ingerência política) da
polícia carioca – como se o mundo ficasse mais simples se o bandido
tivesse levado uma bala na cabeça logo no início do dia.
Não, a situação se acabaria ali, mas o mundo continuaria
aqui para nós vermos e vivermos. E, de forma caprichosamente dramática,
a tragédia foi alongada por ingerência política, como
se fosse a intenção tornar evidente nossa incapacidade em
lidar com Sandro. Foi preciso que ele, assumindo a figura trágica
que se tornou, fosse atrás do próprio destino, que se entregasse
à derrota diante dos representantes de uma sociedade que nunca
soube lidar consigo senão com a violência. Como se diz no
filme, a polícia que não conseguiu matar Sandro no massacre
da Candelária terminou seu serviço anos depois. Somos nós
que sustentamos e precisamos da polícia. Sandro estava do outro
lado, e todo mundo tinha medo dele. Teve do destino o golpe de perder
o apoio familiar (e educacional-financeiro), na infância e de forma
traumática, e daí em diante passou a lidar com a falta de
dinheiro e uma lembrança perturbadora – e a sociedade só
se manifestou através dos seus representantes policiais e punitivos.
Ônibus 174 é, sobretudo, o retrato da tragédia
desse anti-herói brasileiro. E seu plano inicial logo explicita
sua tese: essa é a vida de todos nós, esses problemas são
de todos nós.
Não adianta
chorarmos por Geísa, a vítima maior, que perdeu a vida sem
razão nem culpa. Ela, quem matou foi o revólver de um homem
descontrolado. Mesmo que ela mereça todas as nossas lágrimas,
nada vai mudar ao entendermos o sofrimento dela. Já este homem
descontrolado, é este que não teve ninguém em seu
enterro que deve nos fazer olhar de outra forma nosso cotidiano. Foi ele
quem matamos depois de longa perseguição – as pessoas que
o fizeram por nós podem alegar para si a instabilidade emocional
do momento, mas e nós, que por eles somos representados, o que
podemos alegar? O que nossos representantes deram a Sandro em vida além
de muita porrada? Uma civilização pode preferir achar que
não teve responsabilidade alguma em fazer de Sandro um homem perigoso,
uma figura violenta, que todos os atos dele foram decorrência do
erro inicial de abandonar a família, pode enfim achar muito natural
que um homem só tenha tido da sociedade a violência da polícia
e do confinamento (sem ter ganho nada com este) – ou uma sociedade pode
optar por revisar algumas opções quando se vê diante
de casos assim.
De Rio Quarenta
Graus a Central do Brasil, passando por Couro de Gato,
Pixote e outros mais, o cinema brasileiro mostrou diversas vezes
a infância abandonada. Ônibus 174 nos mostra uma tragédia
conseqüente disso, apenas uma, apenas uma história para representar
todo o nosso fracasso diante desse problema social.
Numa época
de tanto otimismo com relação a mudanças, é
um filme que deveria ser visto não apenas pelo presidente eleito
Lula, mas por todos nós não-extra-terrestres. Precisa ser
exibido em rede nacional, em canal aberto, precisa ser visto e discutido.
Para que a discussão do tema amadureça, para que não
tenhamos mais imbecis a defender que nossa questão social se resolve
com violência policial, como dizia um presidente do início
do século e como parece acreditar ainda uma boa parte da nossa
população. Ao revelar todos os antecedentes da situação
de violência criada por Sandro do Nascimento, Ônibus 174
mostra que precisamos de muito mais que isso.
Daniel Caetano
|
|