Onde
Fica a Casa do Meu Amigo?,
de Abbas Kiarostami
Khaneh-ye dust kojast?,
Irã, 1987
Ahmed
mostra para a mãe a semelhança dos cadernos em
Onde Fica a Casa do meu Amigo?, de Abbas
Kiarostami
Depois de treze anos após
sua feitura, Onde Fica a Casa do Meu Amigo? chega aos cinemas comerciais
do Rio. Experimenta-se, antes de tudo, um certo sentimento anacrônico,
pois diversos dos filmes do Irã já exibidos aqui se relacionam
com ele (além dos filmes posteriores de Kiarostami, como A Vida
e Nada Mais e Através das Oliveiras, O Espelho
de Jafar Panahi faz menção clara a este filme). Mas, mesmo
com o déficit de mais de uma década, Onde Fica...
não tem a menor perda de atualidade ou inventividade. Toda a questão
da temática 'repetitiva' que alguns críticos notaram procede
menos pela data do filme do que pelo modelo de fazer cinema no Irã
(o maior patrocinador de cinema no Irã é o Kanun, Instituto
para o Desenvolvimento Intelectual de Crianças e Adolescentes,
daí a temática). Mas isso é apenas tema para um capítulo
maior sobre os incríveis absurdos que a crítica, em sua
propalada ignorância, já falou sobre o cinema do Irã.
Onde Fica a Casa do Meu
Amigo é um desses grandes filmes em que percebemos que tudo
aquilo que é colocado diante da câmara, como com os melhores
Hitchcock e com Chaplin, será fatalmente utilizado. Todos os signos
que o filme evoca um caderno, uma calça de criança,
uma dor nas costas, uma interdição terão certamente
um uso futuro e imprevisível. Poderíamos imaginar que Onde
Fica... é apenas um filme em que o diretor utiliza magistralmente
a técnica narrativa para realizar um filme mainstream, como O
Jarro e Filhos do Paraíso. Mas não. Kiarostami,
já em 1987, já tinha total controle de como NÃO amarrar
(para utilizar um termo adorado pelos roteiristas) seus filmes de modo
a serem apenas 'bons filmes'. Como em todas as obras-primas de Kiarostami,
aquilo que servia como motivação básica do personagem
nunca é alcançado, e, entretanto, nesse caminho errado,
alguma coisa muito maior se ganha.
Como
é comum em Kiarostami, o desencadeador do filme é um duplo:
o caderno de Ahmad é idêntico ao de Nematzadeh, e no fim
da aula o primeiro caba pegando, por engano, os dois cadernos. O professor
já havia dito a Nematzadeh, que sempre esquecia os cadernos, que
num outro esquecimento seria expulso de sala. É o suficiente para
Ahmad, então, se prontificar a ir até uma parte longínqua
da cidade à procura de seu amigo. Ele sabe poucas coisas sobre
ele, o que não vai facilitar nada a sua procura. Mas aos poucos,
o espectador vai percebendo que, na verdade, pouco importa a procura do
amigo, e sim os passos que é preciso fazer, independente da chegada:
a)
Ahmad chega do outro lado da cidade. Ele de primeira percebe que apenas
com o nome do menino, ele não conseguirá chegar muito longe.
No caminho, ele tem três encontros peculiares. O primeiro é
um velhinho que carrega palha. Como a cena é filmada sem contracampo,
a câmara não permite que se veja o rosto do velho, e Ahmad
parece estar conversando com uma palha ambulante. Logo depois, cai uma
toalha na frente de Ahmad. Essa toalha pertence a uma senhora que mora
no segundo andar. Depois de tentar jogar a toalha para a senhora (que
não vemos), surge um terceiro personagem, a vizinha, que se oferece
para ajudá-lo. Surge aqui um tema que é recorrente na obra
de Kiarostami, e que seria piegas não fosse a sua utilização
tão pouco expressionista: com dois, os problemas se resolvem muito
melhor do que sozinho (o que já é o fim de A Vida e Nada
Mais). Por fim, o encontro com um colega de classe, que na escola
se queixava de dor nas costas. Vêmo-lo carregando um grande balde
de leite junto com o pai. Numa primeira viagem, o menino Ahmad já
toma conhecimento com outros olhos, os olhos do estrangeiro
de uma problemática realidade e de uma saída, mesmo que
frágil, para enfrentá-la. Essa primeira viagem termina quando
Ahmad recebe a informação de que o primo de Nematzadeh foi
para Koker, o bairro do próprio Ahmad.
b)
Ahmad volta a Koker. Ele não consegue encontrar o primo de Nematzadeh,
porque no meio do caminho encontra seu avô, que o faz parar para
lhe dar uma lição de moral. Sob o pretexto de comprar alguns
cigarros, o velho o retira de seu caminho. Enquanto o menino vai lá,
a Câmara se fixa no avô, que explica a um companheiro os métodos
que se deve utilizar para fazer com que as gerações menores
respeitem as maiores: o respeito pelo temor. Quando Ahmad volta, ouve
o nome "Nematzadeh" ser citado. Pergunta aos senhores se algum
deles tem o sobrenome Nematzadeh, mas em nenhum momento os adultos lhe
dão uma resposta. Quando o tal Nematzadeh um mercador que
quer trocar as portas tradicionais por portas de ferro parte de
volta para seu povoado, Ahmad vai atrás dele e volta pelo mesmo
caminho, um morro que parece desenhado com um "s" de Shazam.
Da sua segunda viagem, ele ganha um novo conhecimento: seu mundo é
tão impiedoso quanto o mundo estrangeiro.
c)
Ahmad faz a viagem de volta. O pretenso Nematzadeh vai nas costas de um
burro, mas Ahmad tem que acompanhá-lo correndo. Quando, enfim,
chega bufando à casa do mercador de portas, vê sair dela
um menino com o mesmo par de calças que usava o verdadeiro Nematzadeh.
Num ato de mestria de mise-en-scène, por mais ou menos um
minuto não podemos ver o rosto do menino. O único signo
é sua calça, de um vermelho tijolo desbotado. A primeira
coisa que o encobre é uma porta que o menino carega para o pai,
e depois é o burro. Quando finalmente o pai sai junto com o burro
para entregar mais portas, a câmara permite ver o rosto do menino,
que não é o Nematzadeh que perdeu o caderno. Essa viagem
dá origem ao encontro mais belo do filme, o do velhinho marceneiro.
Tal qual Mastroianni em Viagem ao Princípio do Mundo, o
marceneiro representa as origens do povoado aquele que, como ele
próprio diz sem modéstia, conhece todo mundo o marceneiro
representa a metafísica, a bela tradição daquela
localidade. É ele o responsável pelas janelas e portas que
o falso Nematzadeh quer trocar. O velhinho toma por tarefa, então,
levar o menino Ahmad até seu colega de escola. Durante o caminho,
mostra tudo o que ele fez, mostra-se responsável pela construção
da cidade. Ele é a figura do sábio: ele já é
velho, caminha com lerdeza, mas é exato em seus passos. Ao contrário
de Ahmad, que anda rápido mas não sabe para onde vai: o
paradoxo da passagem de tempo e do envelhecimento. Nesse momento, o filme
muda de estilo fotográfico. Enquanto o dia cai, os reflexos das
janelas começam a, como que por decreto metafísico, a cari
sobre as paredes e rostos dos personagens, sobretudo Ahmad. Ele acaba,
percebemos, de passar uma etapa da sua vida. A casa para onde o senhor
conduz, surpresa, não é a de seu colega de escola. Ahmad
aí reconhece o caminho e o burro à porta. É a casa
de onde ele vinha. Ele tem vergonha de dizer ao velho que o caminho estava
errado, e esconde o caderno embaixo da camisa. Os dois fazem de volta
o caminho, Ahmad sempre com pressa. O velho tenta acompanhá-lo,
mas quando perde suas forças, deixa o menino caminhar à
frente. Mas pouco adianta, porque logo Ahmad pára, com medo dos
latidos que vêm da escuridão. O velho alcança o menino
e lhe dá uma benção: finalmente ele poderá
partir.
O
resto daquele dia é de uma significação longínqua.
No plano seguinte, ele está em casa, diante do prato de comida,
que nem é tocado. Sua mãe o permite, então, que faça
os deveres. Ele faz, numa noite de muito vento, talvez o sinal de alguma
coisa. No plano mais enigmático do filme (reduzir o plano a uma
metáfora do homem contra a natureza não seria satisfatório)
e talvez o mais belo, Ahmad vê sua mãe tirando as
roupas do varal, atrapalhada pelo grande vento. No plano seguinte, já
estamos na escola. Ahmad fez os deveres de casa dele e de Nematzadeh.
Os dois cadernos são iguais, e os deveres também. Quando
o professor vai corrigir, eis que os cadernos estão trocados. O
professor destroca e começa a correção. Corrige o
primeiro e corrige o segundo. Na última folha do caderno de Nematzadeh,
e o que constitui igualmente o último plano do filme, a flor, o
símbolo da viagem, que Ahmad dá a seu colega junto com o
caderno.
Terminado
o filme, poucas coisas se resolvem tranqüilamente na cabeça.
Pois é um conto de fadas às avessas. Ahmad vai à
floresta, mas não consegue achar a casa certa. Seu guia é
certamente um senhor notável, que lhe ensina muitas coisas, mas
que é incapaz de mostrar-lhe o que ele queria. E, o principal de
tudo, todo o aprendizado do filme se faz fora das principais instâncias
de legitimação do pensamento e de educação.
Vemos o professor, a mãe e o avô, e tudo que eles fazem é
deseducar ou, antes, dar ensinamentos absolutamente desvinculados das
necessidades imediatas do menino.
O que constitui um questionamento sério de todo o sistema "molar"
da sociedade. Os laços de ensinamento nunca são os institucionais,
mas sempre os transversais, amigo-amigo, ou então por experiência
individual. O que remete a um certo tipo de anarquismo educacional ou,
pelo menos, à descrença nos grandes modelos vigentes na
educação e reproduzidos sempre em sociedade.
Um
adendo, pois, à poesia seca, cabralina, de Kiarostami. Pois se
nesse texto, tão pouco usual ao contar toda a história de
um filme, são as escolhas narrativas que são privilegiadas,
não é porque o filme seja formalmente pouco inspirado. Ao
contrário, a poesia toda está em jogo em se tratando de
Kiarostami. A começar, por um certo despojamento narrativo. A música,
sempre inexpressiva nos filmes de hoje, exerce um papel preponderante
em Onde Fica a Casa do Meu Amigo? Ela serve apenas para ilustrar
a correria de Ahmad em busca do amigo. Igualmente com a fotografia e com
os enquadramentos. Kiarostami nunca vai realizar um plano state-of-the-art
à maneira dos grandes estetas decadentes de hoje. Ele, ao contrário,
realiza os planos com a maior simplicidade possível, mesmo que
para a simplicidade seja necessário um caminhão de artifícios.
Pois seu realismo nunca é fácil. Pois Kiarostami, se tem
uma concepção excelente de plano, tem mais do que todos
os outros uma concepção primorosa daquilo que está
fora do plano. Se a arte do cineasta não é só mostrar
mas também esconder, Kiarostami é um dos maiores de todos.
E se arte é esse axioma cabralino de enxugar a poesia, Kiarostami
é igualmente perfeito (não é à toa que diversos
de seus filmes inclusive Onde Fica a Casa do Meu Amigo?
são baseados em poemas). Pois tudo significa, e quando percebemos
que num filme tudo significa, é como se estivéssemos vendo
cada coisa pela primeira vez, seja uma calça desbotada, uma porta
azul, um morro empoeirado marcado por um ziguezague, um reflexo na parede.
Abbas Kiarostami, à medida que sua obra é conhecida, assume
um estatuto de grandeza semelhante a outro grande cineasta do fora de
campo e da subtração, e um outro cineasta fora da cultura
ocidental: Kenji Mizoguchi. Ao falar de sua obra, Jean Douchet disse que
Mizoguchi, como Renoir, é capaz de reconstituir o mundo tal como
ele se movimenta: "nunca temos a impressão de que foi fabricado
pela câmara, pois nos convencemos de estar vendo algo documental
e real"1. Idem para Abbas Kiarostami, gênio
do artifício que transforma tudo em real.
Ruy Gardnier
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1. Jean DOUCHET em Mestre Mizoguchi uma lição de cinema,
org. Lúcia Nagib, Ed. Navegar, 1990 |