O
Livro da Vida,
de Hal Hartley
The Book Of Life, EUA,
1998
Em algum momento foi proveitoso acompanhar
a carreira de Hal Hartley. Seus primeiros filmes apresentavam uma ambigüidade
apaixonante, sem saber escolher entre se entregar aos personagens (como
geralmente faz o cinema "alternativo" americano) ou manter o
discurso derrisório sobre a contemporaneidade e o espetáculo
que ele copiou do Godard de Detetive e de Prénom: Carmen.
Depois de Flerte, passando pelo pouco interessante Henry Fool e
culminando em O Livro da Vida, percebe-se definitivamente que o
lado "copiar Godard" ganhou.
Em O Livro da Vida, Lúcifer,
Jesus e Madalena descem à Terra no último dia de 1999 para
romper os três últimos selos do Livro da Vida e, assim, acabar
com o mundo. Jesus, empenhando um belo notebook em que carrega
o livro da vida, caminha pelos Estados Unidos em crise de consciência,
enquanto Lúcifer tenta um amável escroque a vender a alma
de sua companheira por um bilhete de loteria sorteado. Esse argumento
mínimo é o suficiente a Hartley para dar vazão à
sua estética fake e ao seu moralismo superficial: se em
Henry Fool um personagem filosofava sobre a permanência do
livro na era eletrônica, dessa vez o amável escroque filosofa
com Lúcifer sobre a existência ou não da alma, não
sem as piadinhas lingüísticas sem graça comuns em seus
filmes.
O Livro da Vida, experiência
entretanto radical de Hartley na fragmentação filme
quase todo feito de gags, numa profusão enorme de planos ,
é filmado num vídeo que consegue aproveitar esteticamente
as suas limitações, criando às vezes planos com alguma
beleza e um todo consistente no plano da imagem mesmo que a imagem
no filme só sirva para registrar as falas. E quando os personagens
abrem a boca, haja bobagem: a pobre atendente escolhe na loteria os números
31/11/19/99 porque são os números do último dia do
ano, Jesus e Lúcifer falam sobre o Apocalipse e discutem se Lúcifer
se demitiu ou foi demitido.
Depois de sete longas-metragens, é
de se perguntar a que tipo de posto dentro do cinema americano Hal Hartley
pretende chegar. Um Godard da América certamente ele não
é: do cineasta francês ele retira apenas as fórmulas
fáceis sem procurar, como o autor de Para Sempre Mozart,
um espírito de questionamento que justifique todas as gags
e as apostas do filme. Ao contrário, ele parece cada dia alçar
mais e mais o lugar de Papai-Sabe-Tudo do cinema cult americano,
com seu misto de cinema intelectual, cafona, derrisório, cheio
de extravagências e frivolidade envernizada. Logo, um Mauro Rasi
para os new york babes.
Ruy Gardnier
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