O
Invasor,
de Beto Brant
Brasil,
2001
Nascido
da crise e do medo.
* *
*
Um
filme digno de senões. Apinhado de pequenos dilemas, de pequenas
dúvidas, de defeitos. O Invasor não é um filme
de concessões onde o espectador possa deixar de lado suas inquietudes.
O que se inicia como um pequeno "conto moral burguês"
(lidando com os dilemas da dupla de engenheiros vividas por Ricca e Borges),
ultrapassa os limites da crônica de costumes (recorrente na TV)
e alcança patamares de significado muito além das pequenezas
do cotidiano, ou dos psicologismos da culpa moral, do inferno interior.
Há
sim um inferno em cada um dos personagens, mas um inferno que é
muito mais brasa dormida...e é o sopro da realidade além
de suas paredes que fará com que as coisas comecem a ferver. Nem
abdicando de lidar com a humanidade apequenada de seus personagens, nem
apostando apenas num desfile de moralismos, O Invasor consegue
um cruzamento muito importante (e raro...) entre um dilema pessoal e um
dilema social mais amplo.
Ao
contrário da grande parcela da atual produção nacional
de cinema, O Invasor não repete os estereótipos da
"preocupação com o social" resumidos a retratos
românticos da população carente de recursos e de educação.
Não transforma a população marginal em objeto de
caridade ou assistencialismo, não deixa à classe média
o papel de observadora de uma realidade outra, necessitada de ajuda. Não
são os outros, os marginalizados, que vinham sendo excluídos
da sociedade...pelo contrário, é justamente a classe média
detentora de poderes econômicos, que se tornou excluída dessa
realidade social mais ampla. Foi a classe média brasileira que,
transformando a realidade do Brasil em um corpo estranho a si mesmo, necessitado
de uma autocura hipócrita, que se excluiu do jogo. Relegada à
mera observadora (em filmes como Notícias de uma Guerra Particular,
de João Moreira Salles), cuja única participação
nos dilemas do país seriam o cômodo espaço do assistencialismo
e da caridade.
O
Invasor vai justamente contra esse recorte, vai contra a possibilidade
de se pensar uma parcela da população como um objeto a ser
"curado". O Invasor não transforma a periferia
de São Paulo num mundo apático, limitado, impotente. A cultura
da periferia não é levada à tela como uma expressão
de fraqueza social, de pobreza, mas de afirmação potente
da presença e da força daquele espaço. E apesar de
a classe média ainda querer se colocar num mundo à parte,
um mundo modelo para onde todo o crescimento humano se encaminha, o filme
discursa justamente sobre a impossibilidade de se pensar os tais "problemas
da periferia" sem se repensar os hábitos de quem não
vive nela. Como em toda relação de forças dialéticas,
a norma rica e a periferia se excluem e se incluem – sendo uma a secreção
social da outra. Dessa forma, o filme não dita culpados, mas responsabilidades
– a classe média não pode tratar a realidade brasileira
como uma bomba externa a si, mas perceber que faz parte, ela mesma, das
engrenagens dessa bomba.
Apelando
para um sentimento cruel como o do medo, do pavor cotidiano, Brant consegue,
apesar de todos os pesares, incluir a classe média nessa disputa
de poder e sobrevivência. Alegórico e minimalista, O Invasor
é o primeiro filme a assumir seu lugar de representante de uma
classe média que se observa e quer pensar a realidade por dentro
de si, através de si, não apenas como observadora do outro,
do espaço externo onde, segundo filmes como Notícias
estaria se travando uma "guerra particular"... Pois não
há nada de particular em O Invasor que não se torne
público, que não se torne parte ativa de uma realidade complexa
e mais ampla.
Diferente
de exemplos como Cronicamente Inviável, O Invasor
não se coloca como o discurso de uma consciência imparcial
analítica, mas apela para a intimidade com o público. Sentimos
que ali está um filme de um diretor de classe-média, incluído
naquele mesmo jogo mostrado, não apenas retratado, mas proposto
como síntese da tensão social do país e do qual não
há fuga passiva possível...
Apelando
de forma muito inteligente para certos clichês visuais, Brant parte
de estereótipos (como o da chegada videoclípica à
periferia) e se transfigura num olhar estático, assustado. Todo
o olhar videográfico que se tornava um tanto maneirista em seus
dois filmes anteriores, toma ares de angústia em O Invasor.
Como numa imagem não confortável consigo mesma, o filme
não cabe em si, não se resolve, e se debate entre a música
rap facilmente assimilável e os refrões frenéticos
que retiram da imagem o patamar de mero drama pessoal.
Partir
de certos clichês para preparar uma verdadeira armadilha audiovisual
para os olhos é um dos aspectos que melhor demonstram a habilidade
de Brant como diretor. Pois não caímos no olhar simplista
da "justiça social" dos populares videoclipes rappeiros
da MTV (os únicos que se diferenciam foram dirigidos pelo mesmo
Brant). O filme parte dessa estética mas se transmuta ao trazer,
por dentro dessa estética da denúncia alheia, a angústia
de quem denuncia e tem medo, do olhar por dentro. Dar corpo ao olhar,
dar existência ao observador. Num espaço de luta social que
(não resumido aos maniqueísmos que condenaram o discurso
cinemanovista ao desuso) tenta colocar a todos no mesmo palco, com desejos
dispersos e vagos mas universalizados, de alguma forma, pela voz poderosa
da TV e pela cultura pop.
Seria
possível pensar nas periferias das grandes cidades como nosso novo
sertão limítrofe? Um novo paradigma da tensão social
brasileira, mais próxima fisicamente do cotidiano dos detentores
das imagens, como o nosso novo espaço alegórico de força
cultural e mazelas? Órfãos de nossos modelos de justiça,
e escaldados pelo discurso da univocidade que já tentou fazer do
sertão, nosso espelho partido de realidade, seremos capazes de
reinaugurar nosso olhar sobre um espaço marginal transfigurado,
mas ainda violento e resistente? Mais: seria possível que esse
novo espaço de tensão se estabelecesse não por sua
idealização mas como elemento de um cruzamento cultural
inevitável e vital para a reformulação social do
país? Colocaremo-nos todos, finalmente, na mesma bomba-relógio...no
mesmo barco furado?
Como
um filme de potenciais inaugurais, O Invasor traz dentro de si
os elementos gritantes de um rearranjo de valores e de poder dentro do
país, que impossibilita a felicidade prometida pela dádiva
da pura competição, da luta por poder. Um novo poder necessariamente
insinuado, um novo modelo de apreensão visual e narrativa de nossos
agentes sociais.
Se
a obra de Eduardo Coutinho tem, em sua imensa importância, o poder
de trazer ao público de cinema os imaginários diversos de
uma multidão geralmente silenciada pela grande mídia (ou
tratada com assistencialismo/vitimização), muitas vezes
se revela num cinema frágil, permitindo ainda ao público
o papel cômodo de mero observador. Esse projeto de inclusão
dos marginalizados como vozes ativas de imaginários participantes
de nossa realidade é a ponte que trazemos agora à tona.
Pois
havia ali uma lacuna. Uma lacuna a ser preenchida; e é aqui que
entra com força o papel alegórico e inaugural do filme de
Beto Brant. A força de trazer para a ficção cinematográfica
brasileira contemporânea, um aspecto de urgência dos fatos
e de inclusão da classe-média no jogo social brasileiro,
como nunca havia sido feito antes em nosso cinema.
Menos
utópicos mas não menos revolucionários, uma nova
geração de cineastas se torna possível como agentes
políticos e culturais para além dos discursos unívocos
do passado, mas baseados em alegorias dispersas e verdades despretensiosas,
ansiosas por uma nova pulsação no cinema brasileiro. Nesse
cruzamento entre a intimidade suave do cinema de Coutinho e o caos do
estranhamento desse Invasor, pode estar a grande trilha de nosso cinema
futuro.
Nascido
da crise e do medo, O Invasor é o filme que soube, como
nenhum outro filme brasileiro contemporâneo, unir a pretensão
necessária de se contar mais do que uma história e a vontade
de entrar em contato com o grande público (ler artigo Nós
que não fomos ao Oscar, escrito antes de assistir ao filme).
Um libelo para além dos modelos sociais excludentes e assistencialistas
que tomaram de assalto a política e o olhar do Brasileiro sobre
si mesmo. Longe do cinismo semi-estéril de um Cronicamente Inviável
(ou do desastroso Mater Dei), o filme de Brant dá um
passo adiante ao buscar conquistar o grande público justamente
por suas grandes pretensões e sua imersão participante no
universo de seus personagens. Um mérito indiscutível de
Brant, e que faz dele, a partir de agora, o principal nome do que pode
vir a ser, dentro de pouco tempo, um novo e poderoso Cinema Brasileiro.
Felipe
Bragança
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