O
Informante,
de Michael Mann
The
Insider, EUA, 1999
A grande questão
de O Informante parece ser: afinal sobre o quê é o
filme? Nem o papel da imprensa, nem a ética jornalística
(como quiseram crer os que falaram comparativamente em Network e
Todos os Homens do Presidente), nem a manipulação
do ser humano pela cultura de massa. Claro, isso tudo está lá,
mas são subtemas. A verdadeira moral (no sentido de código
de conduta ética) do filme está contida numa frase de Al
Pacino para Christopher Plummer, no restaurante, quando o casal Wigand
se retira: "são pessoas comuns lidando com fatos completamente
incomuns". Isso é o filme. O mais próximo de um épico,
uma verdadeira narrativa mítica, que os tempos modernos permitem.
Dois homens contra forças muito maiores do que eles, mas ao invés
de deuses, corporações.
A forma como Mann
se coloca esteticamente reflete em cada elemento esta opção,
o que claramente é sinal de um realizador rigoroso. A interpretação
de Russell Crowe é a mais impressionante do cinema americano em
muitos anos, chegando a ser revolucionária. Ele não é
uma estrela interpretando em nem um segundo. Ele é sim o retrato
da confusão e da incerteza o tempo todo. Não parece de fato
um personagem de cinema como o cinema supostamente nos ensinou que deveria
ser, nem um ator que interpreta a incerteza, parece mesmo alguém
perdido naquilo tudo, sendo carregado de lado a lado pelos impulsos. Basta
lembrar que ele é demitido justamente por ser muito passional ou
que o personagem de Pacino (este sim a cada filme interpreta mais a si
mesmo, embora aqui seja muito adequado) o tira do transe desesperado pelo
telefone com um xingamento, apelando sempre para a emoção.
Nesse sentido, a fotografia
é parte integrante, e a câmera na mão não é
nunca mero estilo e muito menos "inovação". Ela só
reflete o estado constante de absoluto desequilíbrio e tensão
destes personagens. Ela os sente, e não poderia ser diferente.
Essa câmera deve muito pouco ao Dogma, que tantos evocaram e muito
mais ao cinéma verité e o cinema direto como herança.
A não ser que consideremos o Ondas do Destino como filme
do Dogma, e aí sim há semelhanças muito grandes entre
a relação da câmera com a personagem de Emily Watson,
e com a de Russell Crowe, ambos representando tipos diferentes de desequilíbrio.
Também é besteira quem quer ver na câmera uma deslealdade
do diretor simulando o documental... Pelo amor de Deus, quem entra no
cinema para ver um filme com Al Pacino achando que é um documentário??
Vão se preocupar com as utilizações de câmera
e trilha no Jornal Nacional, estas sim preocupantes. Aqui a câmera
serve aos personagens, à ética do filme. E a câmera
é só um dos elementos da fotografia estupenda de Dante Spinotti.
É importante pensar o uso do scope e dos constantes closes, e a
dimensão superreal que esse artifício cria (tela gigantesca
com planos fechados, o contrário que nos ensinaram em "Manual
do Uso do Cinemascope"). É importante pensar o uso do foco
como elemento narrativo.
Quando se pensa o
filme como uma tragédia moderna, a trilha é o que mais aponta
esse caminho de Mann. Ela tem sonoridades antigas ao contrário
do que se esperaria de uma trama rápida e nervosa (talvez uma musiquinha
de Howard Shore...). Ela soa como a música grega mesmo. Ela destoa
do tom do filme, e cria deste estranhamento significado. Chama a atenção
para dentro, quando o movimento da câmera parece defender a ditadura
do exterior.
No fim das contas
no filme o que importa menos é a conotação político-social,
e mais a condição humana. A família que vai embora,
o medo, o desconforto de estar cercado por seguranças num aeroporto.
Assim, o filme é dividido inteligentemente por Mann em duas metades:
a primeira é de Wigand batalhando contra si mesmo e contra a indústria
do tabaco, e a segunda de Bergman contra a CBS. Nos dois casos interessam
os dilemas e fraquezas humanas dos dois personagens. E há cenas
belíssimas de uso inesperado da trilha e da imagem, como o momento
da decisão de testemunhar ou não, o momento de alívio
dos dois após o testemunho, a conversa por telefone em que Pacino
revela para Crowe que não vai veicular a entrevista, a conversa
no japonês. E talvez o plano mais fantástico seja o que enquadra
a parede da casa de Wigand com ele aparecendo pela janela da cozinha,
perdido, e do lado de fora o segurança sentado na varanda.
Nesse sentido é
que reafirmo que o tema do filme não são os dilemas éticos
do jornalismo. Porque este tema se refere a uma discussão e conhecimento
da ordem do racional. Estaria portanto no "plot" do filme, na maneira
do autor colocar sua estória. Quando o filme mergulha no que podemos
chamar de Humanismo, ele acaba transcendendo este tema.
Mas o que chamamos
de Humanismo, uma palavra de significados diferentes para cada um que
a usa? Bem, Humanismo na arte, como o entendemos, se refere a um fenômeno
de abraçar a eterna dualidade do ser humano: corpo + espírito.
Não se vê a vida cotidiana só pelo prisma de um deles,
é impossível. Consideremos (para entrar menos em outro termo)
espírito como tudo na vida que não se refere diretamente
ao mundo material. Um filme humanista portanto, tenta abraçar esta
dualidade, e ainda outra, a de que o Bem e o Mal, os defeitos e qualidades,
estão presentes em todos os seres humanos que vivem em eterna luta
interior por isso. Tanto que é questionável o plano final
que torna heróico o personagem de Pacino. Não os vejo como
heróis ou exemplos, mas como homens seguindo sim um código
ético, mas antes de tudo seguindo as circunstâncias e emoções
do momento.
Isso explicado, daí
porque para mim, ao mergulhar neste campo do Humanismo, O Informante transcende
a questão do jornalismo (uma questão de ordem material)
para o espiritual: como essa questão afeta uma vida humana, muito
maior do que apenas um dilema ético, pois ao envolver família,
amor, medo, imobilidade, raiva, perplexia, segurança, ele ultrapassa
um nível ético (lógico-racional) em busca do quase
mítico (mais uma vez me apropriando...). Assim é que O
Quarto Poder de Costa Gavras é sobre a ética do jornalismo.
Pois a filmagem+montagem (=cinema) de Gavras privilegia a informação,
o storytelling puro e simples, mantendo-se num nível narrativo
e racional.
Se o filme fosse só
sobre a "ética do jornalismo", ele não teria nada de novo
a dizer. Se não vejamos: "Homem sabe demais, jornalistas manipulam
a Verdade, interesses financeiros fazem alguns mudarem de posição,
outros não, o que vem antes, vale sacrificar a vida pessoal pelo
Bem público, etc" Cá entre nós, isso é tudo
muito forte e tal. Mas quando o Billy Wilder faz A Montanha dos 7 Abutres
na década de 50, me parece que ele já esgotou todas as possibilidades
de alguém pensar em falar algo de original só por estar
tocando no assunto. O que Mann consegue fazer ao impor seu estilo e mais
sua própria ética de artista no filme é suplantar
os limites do tema, transcendê-lo portanto.
Neste Humanismo, o
interesse não está na decisão dos personagens, mas
sim na sua dúvida. Todo cinema que não é de respostas
mas de perguntas interessa mais. Por isso À Espera de um Milagre
é menor, porque tem respostas. Por isso Vivendo no Limite
de Martin Scorsese é maior, porque tem dúvidas. `Por um
cinema (e daí mesmo um mundo!) de menos certezas e mais perguntas!!
Eduardo Valente
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