O
Homem Que Copiava,
de Jorge Furtado
O Homem Que Copiava,
Brasil, 2003
De que Jorge Furtado
é um hábil roteirista ninguém duvida. O Homem
que Copiava, segundo longa-metragem que escreve/dirige, apresenta
uma narrativa absolutamente engenhosa e consciente de seus artifícios.
Não faltam aspectos elogiáveis no filme, desde a concepção
de espaço (a grande cidade introduzida a partir de pouquíssimos
pontos de referência que se repetem ao longo do filme, construindo
a idéia de "mundo pequeno") até o trabalho com
o elenco e a assimilação do artificial por ele mesmo (diferente
daquele artificial atabalhoado que, como bastante comum no cinema brasileiro
contemporâneo, no fundo pretende naturalismo). Ao optar por atores
consagrados, ao contrário do que havia feito com Houve Uma Vez
Dois Verões, Furtado demonstrou que é possível
transpor figuras globais para a telona e tê-las em sintonia total
com o filme, a despeito de uma suposta estereotipagem promovida pelas
suas presenças constantes na televisão.
Os diálogos
escritos e encenados por Furtado vêm se mantendo, desde os curtas
até os dois longas, bem ritmados e atraentes (os com Pedro Cardoso,
em O Homem que Copiava, são particularmente cômicos).
Sem nunca abrir mão de um enredo claro e divertido, o cineasta
confirma sua vontade de congregar exercício de estilo a histórias
que partem de uma fórmula simples, porém são trabalhadas
de maneira inventiva. Em linhas tão grosseiras quanto negligentes,
O Homem que Copiava pode ser assim resumido: homem comum observa
mulher comum e gosta dela; há o encontro, ambos se apaixonam, eliminam
obstáculos e ficam felizes. O que ocorre no miolo é uma
sucessão de pontos de virada e artimanhas da narração,
incluindo flertes com elementos de um ou outro gênero cinematográfico,
algo que Furtado faz com a maior descontração do mundo.
O tal miolo, que pode
ser demarcado como o espaço compreendido entre o fim da apresentação
e a descoberta do bilhete premiado esta cena inclusa é o que
há de mais cativante no filme. O restante, contudo, torna O
Homem que Copiava um filme eficiente somente até certo ponto.
Há algo nitidamente sobrando, a começar pela excessivamente
longa auto-apresentação do protagonista (aferir-lhe uma
boa alma e conquistar o público logo de início para que
depois não haja julgamento?) e a terminar pelos atropelos do roteiro
lá pelo terceiro terço do filme (como se o quebra-cabeça
tivesse adquirido mais peças do que o tempo de sua resolução
permite). Certos atropelos, por outro lado, são propositais e realmente
funcionam, a exemplo do final feliz.
O happy end
em O Homem que Copiava, assim como em Houve Uma Vez Dois Verões,
é simplesmente uma preferência do autor. Ele quis que, não
importando o quão tortuosos fossem os caminhos dos personagens,
tudo terminasse bem. Esse happy end não é algo construído
desde o primeiro fotograma, no sentido de encaminhar os personagens para
tal desfecho, de fazê-los merecer um final alegre e afortunado
até lúdico, num certo aspecto. Por trás de um pragmatismo
vacilante e de uma suposta obstinação do protagonista (André,
personagem de Lázaro Ramos, sabe bem o que quer: ter dinheiro,
conquistar a mulher que ama e levá-la ao Rio de Janeiro), há
uma moral oscilante, atitudes dúbias, veleidades daí a
dificuldade de um possível detrator flagrar um discurso moralizante
no filme. Ainda que bastante objetivo nos seus anseios de conquista (o
dinheiro, a mulher, a viagem), André não representa o herói
à americana, aquele que ao pragmatismo assomaria clareza de princípios,
conduta, moral inabalável, enorme força de vontade. Faltam-lhe,
ao herói de Furtado, não só essa convicção
no que diz respeito aos fins como também a destreza quando da utilização
dos meios. André é tímido, travado, sente vergonha
de trabalhar numa máquina de xerox, fato que escamoteia dizendo
às meninas que é "operador de fotocopiadora".
Sua força de vontade a princípio parece determinante, mas
os agentes externos não tardam em mostrar sua primordialidade
e, como a narração em off de Leandra Leal revela
ao fim, André fora envolvido num jogo do qual conhecia só
parcialmente as regras. "Não levo heróis muito a sério",
disse Furtado em entrevista (ver Contracampo nş 47). E por isso prefere
a comédia.
Comédia voyeurista?
Não, é preferível não rotulá-lo, mas
apenas expor que o voyeurismo, único "crime" cometido
por André que aos mocinhos americanos também era permitido
(Hitchcock que o dissesse), ajuda a unir, através do olhar do protagonista,
o espaço aparentemente fragmentado de O Homem que Copiava.
A aparente fragmentação é resultado da narrativa
ágil, picotada em alguns momentos, cruzamento de técnicas
em vários outros (ótimas animações e trucagens).
Mas o enredo, no fundo, confere autonomia ao espaço, torna-o fechado:
as "coincidências" não cessam de acontecer, as
pessoas se esbarram como se, mesmo em meio à metrópole,
vivessem num mundo muito pequeno e suas vidas, por conseguinte, estivessem
submetidas a ciclos (seu enredo realmente cíclico, porém,
é o do anterior Houve Uma Vez Dois Verões em
O Homem que Copiava prevalecem as interrupções e os
redirecionamentos). O espaço, portanto, longe de ser fragmentado,
está reunido em torno dos personagens e encerra-os, espaço
quase determinista (um flerte com o cinema de gênero, afinal, não
poderia deixar de passar por aí).
O Homem que Copiava
enaltece o poder da ficção e, como é muito raro,
debruça-se sobre nosso desejo de consumi-la sem julgamento depreciativo
(ganhar uma fortuna do nada, comprar um Mercedes e passar a noite num
hotel cinco estrelas pura ficção de consumo não
parece condenável). Enaltecimento da ficção que faz
com que Silvia (Leandra Leal) mate seu pai, ou padrasto que seja, menos
por odiá-lo e achar sua morte justa do que por estar no cinema
(a girl and a gun, certo?). Os personagens de O Homem que Copiava
não precisam fazer uma boa ação e garantir a felicidade
alheia para só então conquistar a sua não há
esse "fabuloso destino" (no sentido poulainiano do termo) rondando
a vida de André, de Silvia ou dos demais. Esses personagens que
roubam, enganam, falsificam e matam, portanto, serão vistos felizes
no belo plano derradeiro, independente da "mensagem errada"
que essa imagem pode representar para alguns.
Seguindo a composição
dialética de Ilha das Flores, clássico curta-metragem
de Jorge Furtado (e que rende a private joke do final, ou seja,
a participação de Paulo José, narrador de Ilha
das Flores), O Homem que Copiava faz uma cena completar a anterior
negando-a, não propriamente ludibriando o espectador, pois desde
o princípio do que a imagem de notas de cinqüenta pegando
fogo serve como metáfora salientou a falsificação
do "Real" engendrada pelo filme. Não é só
o dinheiro que se reproduz de modo falso e passa de mão em mão:
a vida se encena minuto a minuto, e não se pode falar em realidade
absoluta. A imitação da vida é a vida em si mesma.
E, assim sendo, por que não terminar com a afirmação
feliz de tudo isso, com sorrisos sob um enorme abraço Redentor?
Ao que o filme indica, Furtado não titubeou em fazê-lo
com prazer, já que O Homem que Copiava definitivamente passa
essa boa impressão de que é um filme feito com muito gosto
pelo ofício.
Luiz Carlos Oliveira
Jr.
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