Onze
Homens e um Segredo,
de Steven Soderbergh
Ocean's
eleven, EUA, 2001
Se alguma coisa faz com que cada filme de Steven Soderbergh seja um enigma
para ser adivinhado, é sem dúvida seu gosto por projetos
estranhos, aparentemente inconciliáveis um com o outro. Como imaginar
o diretor de sexo, mentiras e videotape fazendo Erin Brockovich,
ou o diretor do não-visto Schizopolis realizar Traffic?
Sim, dá antes de tudo para visualizar a dimensão dos filmes-box-office
(com Julia Roberts ou George Clooney) e os exemplares mais bizarros, como
O Estranho. Poderíamos nos conformar dizendo que o cinema
de Soderbergh é acima de tudo estiloso e maneirista, e que a esse
respeito ele nada mais faz do que integrar a grande massa reinante que
ocupa nos dias de hoje o novo cinema americano. Mas aí alguma coisa
se perde, porque o grande barato do cinema de Soderbergh, se há
um, é justamente o de usar e abusar de códigos já
usados, mas sem se apegar necessariamente a nenhum deles (ao contrário
do que fazem PT Anderson com Scorsese e Altman ou Luhrmann, até
mais talentoso, com Minnelli e Ophüls). Todo interesse de Steven
Soderbergh com o cinema baseia-se numa simples e única faceta desta
arte: o cinema como jogo, o cinema tomado exclusivamente em seu aspecto
lúdico.
Até então,
não podíamos conceber nada disso até porque o próprio
Soderbergh não se prestava muito a tal elucubração.
Seus filmes eram exemplares muito bem-sucedidos de mise-en-scène,
de trabalho estilístico, mas sofriam incrivelmente (como nos filmes
mais fracos dos Coen) do defeito de que a moldura do filme era muito mais
importante do que o próprio quadro, de que a forma do filme se
descolava absolutamente de seus personagens e passava a observá-los
de cima. Envolvendo-se em filmes com um conteúdo moral muito forte
(como Traffic, por exemplo), inevitavelmente meteu os pés
pelas mãos e fez um filme equivocadíssimo, onde a forma
estereotipa e tipifica cada localidade por meio de filtros coloridos que
tentam dar uma "identidade" (repare-se como o conceito é quase
publicitário) a cada geografia que se filma.
Mas aí vem
Onze Homens e um Segredo, um filme honestamente hollywoodiano (o
que Soderbergh sempre foi por alma, mesmo quando esteve fora), em que
o autor não tem que prestar contas a não ser com a história
do cinema,ou seja, com o original Ocean's Eleven de Lewis Milestone,
além da própria produção recente dos filmes
de ação americanos. Ótimo para eles, mas melhor ainda
para nós. Porque, ao contrário do Ocean's Eleven original
e da grande produção americana contemporânea, o novo
Ocean's Eleven é um verdadeiro elogio da fluidez, da interpenetração
de corpos (corpos elétricos, informacionais) e da truncagem sendo
jogada contra ela mesma. Um filme virótico, um filme líquido,
como antes dele Missão: Impossível e Olhos de
Serpente, dois filmes recentes de Brian de Palma aos quais o filme
de Soderbergh paga seu tributo.
Somos apresentados
diretamente a Danny Ocean (ou George Clooney), que tão logo sai
da prisão já arma um plano impossível: assaltar o
cofre interligado de três dos maiores cassinos de Las Vegas, um
cofre incansavelmente vigiado por câmeras, seguranças, sensores...
Virtualmente impossível,
pois. Mas a graça de Ocean (que se consagra na graça de
Soderbergh) é justamente a de mostrar em que medida o impossível
pode se transformar em possível, em que medida os mecanismos de
truncagem e segurança podem tornar-se em fluxos de destrancamento,
em movimentos que possibilitem o livre ir e vir (da informação,
do dinheiro). E essa opção pelo elogio do fluxo, Onze
Homens e um Segredo sabe fazer inclusive em sua forma. Mesmo respeitando
a tensão dramática de certas horas em que deve haver um
peso maior, o filme é impressionantemente leve, doce e fluido.
Claro, para isso são inevitáveis os heróis do filme,
todos dotados de um charme e de uma presença de espírito
enormes.... Afinal, não é virtualmente impossível
colocar George Clooney, Julia Roberts, Andy Garcia, Matt Damon e Brad
Pitt no mesmo filme? Tão lúdicos quanto o próprio
Soderbergh, eles respeitam a regra geral do original de Milestone: having
fun. Assim, mesmo com atuações desiguais (Clooney perfeito,
Pitt jamais conseguindo superar Dean Martin, Garcia gélido como
nunca), o charme de tantos atores importantes juntos contracenando faz
grande parte da graça do filme.
No fundo, Onze
Homens e um Segredo é um elogio da astúcia, da malandragem,
do saber-fazer. Elogio do cinema como questão de masterminds,
de controladores do espetáculo tanto quanto de artesanato, do cozer
e descozer de um fio ou do montar e desmontar de máquinas. Com
uma característica acima de todas: charme. O grande assalto acontece
sem barulhos, sem lances baixos, sem disparos de armas e inclusive sem
cabelos desalinhados. É um golpe quase que imaterial. Dada a natureza
do filme, nada mais natural que isso. Mas dado o cinema de Soderbergh,
geralmente muito pouco físico – repetindo em chave menos cifrada:
muito pouco tesudo –, algo a se permanecer apreensivo quanto ao futuro
do cineasta. Mas, por enquanto, o filme é esse, e assim está
muito bom.
Ruy Gardnier
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