E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?,
de Joel Coen

O Brother, Where art Thou?, EUA, 2000


E Aí, Meu Irmão, Cadê Você, de Joen Coen

O cinema dos irmãos Coen tem sido chamado de eminentemente metalingüístico desde seu primeiro filme, Gosto de Sangue, de 1987. Aparentemente, seu principal assunto é o próprio cinema, seus códigos, sua linguagem, seu clichê. A cada filme eles parecem aprofundar esta linha de pesquisa, uma linha aliás quase tão antiga quanto o próprio cinema. No entanto, se realmente o início de sua carreira é de ordem basicamente referencial, chegando esta fase a seu ápice com Barton Fink em 1991, desde então os Coen parecem ter mergulhado num caminho bem mais complexo, ainda não completamente decodificado pela crítica. O fato é que eles aprofundaram nos seus três últimos filmes uma linha que de certa forma já estava presente desde o início e atravessa todos os filmes, mas que só agora assume uma importância frontal: o principal assunto passa a ser os próprios EUA. Os filmes dos Coen não são daqueles que poderiam se passar em qualquer lugar, os chamados "filmes universais". São filmes intrinsecamente americanos, até a medula. Mais do que apenas falar do cinema, eles falam de todos os clichês, lendas, histórias, regiões e situações tipicamente americanas. Em suma, eles recriam uma mitologia do imaginário norte americano. Desde Fargo, e ainda mais no subestimado O Grande Lebowski, os irmãos têm se dedicado a olhares específicos sobre regiões do país. Olhares que, usando muitas vezes a comédia, tentam revelar o que há de secreto e mais típico das regiões enfocadas. No entanto, o mais impressionante neste olhar é que não é ácido ou satírico colocando-se de fora, rindo dos seus retratados. Pelo contrário, em todo o ridículo que enxergam, os irmãos Coen mantêm claramente um profundo carinho pelos seus personagens.

Pois bem, este novo filme talvez seja o passo mais ousado nesta direção, pois sua proposta é ser, nada mais nada menos, do que um imenso inventário do sul dos EUA. Um inventário que vai reunir a História, a música, o cinema, os mitos, os temas principais. Não por acaso parece adequada a citação satírica da Odisséia de Homero como fonte de inspiração. Pois tal e qual nesta, o filme parece propor uma nova mitologia através da jornada de um herói tentando voltar para sua amada.

Pode-se analisar o filme sob os mais diferentes aspectos. Um dos mais importantes certamente é o musical. O filme indica que a música possui papel de destaque na formação cultural dos americanos, em especial do Sul. Por isso, faz um inventário que passa pelo blues, pelo gospel, pelo country, pelo folk, pelo cancioneiro tradicional. Todas as seqüências são musicadas, com canções que variam o estilo e juntas compõem um painel dos sons do Sul. Da mesma forma, eles retomam a importância do aparato cinematográfico como citação, o que faz todo sentido se considerarmos os EUA como um país voltado para o cinema, que foi a arte do século XX, assim como eles foram a potência mundial do século. Falar dos EUA é falar de seu cinema. A fotografia do filme é absolutamente estupefante pois adquire uma coloração completamente suprarreal, que lembra um filme em preto e branco colorizado pelo computador. Todos os matizes e o contraste são realçados, de forma a produzir uma imagem anti-naturalista que remete por si só a uma narrativa fantasiosa (O Mágico de Oz não pode fugir à mente). As interpretações seguem esta linha, assim como as caracterizações. É especialmente brilhante a interpretação cômica de George Clooney que cria um tipo meio Clark Gable, vaidoso, extremamente hábil com as palavras e cheio de ginga. Mas não se pode deixar de falar também de Holly Hunter, que com um olhar diz tudo de sua personagem, mostrando o que é interpretar para a câmera.

Mas, certamente, embora não se possa ignorar estes aspectos artísticos, sobressai mesmo a presença da História e dos mitos do Sul. Está lá a Ku Klux Klan (numa cena belíssima que brinca com o cinema, ao mostrar brancos pintados de preto –o que era uma atitude racista- como forma de enfrentar o racismo); estão lá os grandes "Chefes" políticos que misturam a política com a cultura e com presença essencialmente demagógica; está lá a Grande Depressão e seus migrantes e efeitos; está lá a presença da religião e do dinheiro como duas forças motrizes da sociedade. Da mesma forma, falando de lendas: temos a presença do marginal heróico, o gângster solitário; temos a figura do fugitivo da prisão, absolutamente central no imaginário americano; temos os "rednecks", os fazendeiros isolados e broncos; temos a clássica história da venda da alma ao Diabo como origem do blues. Temos ainda a imagem da ida para o Oeste e da posse da terra como duas obsessões centrais que fazem com que a civilização americana se mova adiante.

O mais impressionante do filme é conseguir juntar todas estas coisas num formato de deliciosa odisséia cômica, episódica, onde cada cena pode ser vista isoladamente como "sketches" mágicos e hilários, ou como parte de uma narrativa. O fantástico e o real se misturam com freqüência. E, no final, transparece mais uma vez o carinho e o olhar extremamente afetuoso, ainda que crítico, dos irmãos ao seu país. Um olhar incisivamente cinematográfico, e por isso mesmo, americano. E que, no fim, indica a chegada do novo tempo com duas belíssimas cenas: a da inundação que termina com a frase "o Sul vai mudar"; e a caminhada de Clooney e Hunter em frente a um painel que fica como um cenário "fake" onde aparece escrito "Power and Light", como uma projeção das mudanças que virão em breve. O Sul (e os EUA) vão sim mudar, mas o que os Coen parecem dizer é que não se pode ignorar a força desta mitologia toda própria, desta cultura, desta História, pois é delas que sai o país de hoje.

Eduardo Valente