Nós
Que Aqui Estamos, Por Vós Esperamos;
de Marcelo Masagão
Brasil, 1999
Espectros de uma história
pensada
Marcelo
Masagão elegeu como "consultores espirituais" de seu Nós
que aqui estamos, por vós esperamos Sigmund Freud e Eric Hobsbawm.
Elegeu-os ambos e com isso elegeu na verdade os dois campos de pensamento
utilizados para permear a lógica do filme.
No entanto,
parece haver uma clara preferência por um dos "consultores", marca
que conduz conceitualmente e que aparece decalcada esteticamente: o filme
se aproxima mais de uma Die traumdeutung ("Da interpretação
dos sonhos", primeiro livro de Freud, inauguração da psicanálise),
que de um Era dos extremos (considerado a obra-prima de Hobsbawm,
uma narração do "breve século XX"). Há um
favorecimento do eixo psicológico dos acontecimentos (lido psicanaliticamente)
em detrimento do eixo historiográfico.
Esse favorecimento
se insinua na própria estrutura do filme: ele é composto
por imagens "oníricas", como as descrevia Freud. Em vez de historiográficas,
em vez de serem efetivamente narrações, as imagens são
fractais, são todos-parte, são imagens-síntese, como
as produzidas pelo inconsciente no sonho. Nelas não há uma
lógica temporal linear a priori mas sim uma composição
múltipla, uma espécie de mônada de referências.
Cada imagem do filme é uma rede de relações não
de ordem histórica, mas de ordem conceitual. Um exemplo disso são
as duas seqüências que ficaram mais famosas no filme: os duos
Reisfeld/Challenger e Fred Astaire/Mané Garrincha (este tão
felizmente intitulado Quatro pernas). Nelas, não se conta
exatamente nenhuma história. Faz-se uma ponte onírica entre
elementos conceituais. Inventa-se uma irmandade entre imagens que nunca
seriam irmãs caso a lógica de montagem de Masagão
não houvesse.
E é esse
o elemento central: esse sistema de cenas formadas por imagens-síntese
produz um filme completamente criado na montagem, mas essa noção
ultrapassa a mera consciência de que o procedimento técnico
da edição foi primordial para o projeto, mas chama a atenção
para o fato de que há um procedimento efetivo de montagem na construção
do filme.
A montagem feita
por Masagão, com vigor, é uma sessão de divã.
Ele, diante da história do século XX, e da dos mortos que
a compuseram, monta analiticamente, psicanaliticamente: monta sonhos,
redes de significação (por vezes ocultas, como as do inconsciente),
um sistema de cenas-rizoma (no sentido deleuziano).
A opção
por esse eixo psicanalítico, no entanto, traz para o filme uma
aparente contradição: ele é um documentário
que não exatamente documenta (no sentido histórico e até
jornalístico do termo), um filme histórico que não
faz historiografia (mas qual deles faz afinal?). Disso decorre um esvaziamento:
o filme não assume postura política definida, parece não
se esclarecer como conexão com a história, pelo menos no
nível em que se poderia esperar.
Um exemplo desse
jogo de esvaziamento é a seqüência Paranóia,
em que os rostos de líderes mundiais são exibidos de maneira
distorcida, moldados pela brilhante música de Win Mertens. Ora
as faces que são exibidas parecem compor o quadro dos "escroques"
do século: Hitler, Mussolini, Pol Pot, etc. Trata-se de uma lista
tradicional de ditadores, todos eles responsáveis por alguma situação
de totalitarismo, ausência de democracia e até de violência
extrema. Não se faz menção à participação
americana nas grandes desgraças militares/políticas do século
– o que parece ser também uma tradição –, mas no
meio do painel, aparece o nome de Mohamad Reza Pahlavi, xá do Irã
que foi derrubado pela revolução islâmica! (considerado
um democrata, um amigo do ocidente, etc.).
Mas um detalhe
se revela: aquilo a que se chega efetivamente no filme, com sua maneira
particular de se exibir (e este é um detalhe primordial: o filme
se mostra, não mostra exatamente nenhuma outra coisa), se é
a-historiográfico, não é anti-historiográfico,
é uma pró-historiografia: no fundo, Nós que aqui
estamos... é um filme publicitário. Ele faz propaganda
da história e de um gênero muito específico de história.
A opção
pela micro-história é clara e representa o eixo hobsbawmniano
do filme, como se vê, nem tão ignorado assim, apenas subliminarizado).
Para fazê-lo,
Masagão investe, então, em uma estética consideravelmente
sedutora, persuasiva, convincente, como um filme publicitário deve
ser. Ele lembra inclusive os comerciais do jornal O Globo quando fez um
aniversário ou do Jornal do Brasil e da Folha de S.Paulo no aniversário
do AI-5: seqüências de imagens históricas com narrações-guia
e música comovente.
Mas o diretor-montador
monta seu filme não macroscopicamente (montando apenas imagens),
sua estratégia é microscópica: soma as imagens segundo
sua lógica (baseada em sua discussão sobre a morte e as
imagens, de que se imbui o título do filme), e junto a elas, em
um espetáculo monista, subliminariza a narração por
convertê-la em legendas que se fazem parte da própria imagem.
Como as imagens sobre as quais se colocam, elas são multissêmicas
(por exemplo, como a colocação das frases curiosamente deterministas
de uma das primeiras seqüências: "a pintura já
era Picasso" ou "o balé já não era clássico").
É uma maneira de legendar não legendando, quase uma "propaganda
subliminar" e sobre essa rede, derrama a música minimalista de
Win Mertens (e a de André Abujamra) que, se não foi composta
para o filme, parece ter feito com que as imagens fossem compostas para
ela: a montagem a acompanha e se utiliza dela como em um balé.
Há uma inegável coreografia na edição do filme,
uma coreografia fascinante e, sobretudo, hipnótica (como a publicidade
deve ser).
Isso tudo faz
da exibição um sistema de unificação dos eixos
do filme, produzindo a publicidade de que falamos. Assim, o que se vê
o tempo todo na tela é uma História esvaziada de história,
preenchida, na verdade, pela defesa da história. É uma boa
defesa da micro-história, um mostruário do quão efetivo,
importante, e sobretudo, emocionante, pode ser lidar com a micro-história,
com a corrente da historiografia que se preocupa com os pequenos, com
os desconhecidos, com os hábitos.
Deitar o século
XX no divã foi o mecanismo adotado por Masagão para realizar
seu intento. Pode-se cobrar dele uma maior profundidade política
ou maior amplitude de referências, mas a rede que ele construiu serve
muito bem ao propósito de discutir a relação da imagem
com a morte: em vez de produzir exibições dos personagens
pequenos e grandiosos (e aqui o jogo não é de oposição,
mas de dupla adjetivação) do século, promove aparições:
é com fantasmas que ele narra a história, fantasmas montados
de pedaços de histórias, que existem em um inconsciente que
pode ser chamado, mas não no sentido junguiano, de coletivo, e sim
de coletivizado, porque projetado na tela.
Alexandre Werneck
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