Ninguém
Escreve ao Coronel,
de Arturo Ripstein
El Coronel no Tiene Quien
lo Escriba, México, 1999
Basta apenas um plano
para que saibamos estarmos dentro de um filme de Arturo Ripstein: a câmara
móvel que faz movimentos a um tempo bêbados e sóbrios,
a luz opressora
da fotografia escura que reflete a obscuridade dos personagens, mas acima
de tudo o ambiente opressor que é o meio-ambiente dos personagens
de todos os seus filmes. O cinema de Arturo Ripstein reside nessa fórmula
mágica de nos fazer amar aquilo que é detestável,
mesquinho, pobre, inconsistente, fraco de espírito: é certamente
um cineasta da ternura do sofrível.
A história
nos é apresentada rapidamente: um casal vive ns miséria
há anos porque um decreto que daria uma pensão aos veteranos
de guerra não chegou até aquela pequena cidade. Faça
o que faça, recorra a quem recorra, ele jamais verá a sua
pensão chegar entre a correspondência que um barco diariamente
entrega às manhãs. Ele vive com a sua esposa nessa ilusão
de pensão assim como vive toda a sua vida: ele jamais consegue
admitir a situação de sua vida, jamais consegue observar-se
como aquilo que entretanto ele é. Nos filmes de Ripstein, há
sempre uma lógica da psicose: seus personagens não reconhecem
nenhuma ligação simbólica com o meio em que vivem,
presos demais em suas próprias mitomanias. Não é,
todavia, uma psicose da grandiosidade: é, ao contrário,
uma psicose da indigência. Seus personagens são definitivamente
porcos que chafurdam numa lama quie eles próprios inventam. Daí
a grande deformação das adaptações de suas
útlimas obras: se em Vermelho Sangue a roteirista (fabulosa
colaboradora) Paz Alicia Garciadiego opera uma despsicologização
em relação ao filme original, The Honeymoon Killers
(dirigido por Leonard Kastle nos anos 60), dessa vez ela tira o foco da
crítica social em Garcia Márquez para recolocá-lo
na profunda miséria humana.
O tal coronel vive
com sua esposa numa casa quase devastada, gasta pelo tempo e pelos maus
cuidados, colorida sempre pela fotografia com um mórbido verde
musgo. Eles vivem em outro mundo, notadamente aquele que foi perdido quando
seu filho foi assassinado numa briga a propósito de uma rinha de
galos. A partir desse acontecimento, todo o meio-ambiente do casal de
ressignificou: o filho tornou-se um santo, os amigos são os apóstolos,
a prostituta tornou-se Maria Madalena, o assassino é belzebu em
pessoa e o galo tornou-se objeto de adoração. A única
relação que eles ainda pretendem manter com seu vilarejo
é a esperança da chegada da carta com o pagamento da pensão,
a carta que ninguém escreve ao coronel. A única coisa que
brilha naquela casa destruída é o galo, objeto sublimado
de toda a potência que eles não têm, símbolo
da virilidade que o coronel teve e seu filho teria se não tivesse
sido morto. Todo o problema do filme começa quando o casal não
tem mais qualquer dinheiro para comer e precisa fazer algo com o galo:
vendê-lo ou usá-lo como galo de briga.
No meio de toda essa
situação problemática, um personagem ambíguo
aparece: é o compadre do coronel, que diz querer ajudá-lo,
dá algum dinheiro e quer arrumar um comprador para o galo. Um longo
percurso acompanha o coronel em sua decisão, que por fim é
de se desfazer do bicho. Para quê! Logo, aquilo que não se
pintava como decadência começa a assumir ares de pobreza,
aquilo que era tempo começa a ser encarado como ócio. O
casal, que outrora só conseguia se ver refletido na figura do galo,
se dá consciência de sua colossal miséria (mais espiritual
do que material) e precisa ter o bicho de volta. Mas é impossível:
uma vez vistos sem seu espelho, jamais conseguirão ter acesso novamente
àquela esfera que lhes parecia suficiente. Eles terão que
se dar conta da posição deles, a sociedade voltará
a contar para eles e eles passarão a ser mendigos de seu vilarejo.
Mas isso eles não admitirão: eles preferirão passar
o resto de seus dias enfurnados, a comer merda.
O cinema de Ripstein
é facilmente reconhecível e adorável
pela forma que ele encontra de filmar a patologia da vida comum, os excessos
daquilo que na vida em sociedade é aceito (e até elogiado)
se restrito a certos níveis. Mas talvez ele tenha sido pego demais
pela escritura de Garcia Márquez: às vezes, Ripstein filma
o personagem do coronel e a de sua esposa de forma complacente, auto-indulgente.
Não fosse o seu rigor de encenação, um rigor clínico
que transforma todos os seus personagens em caso de diagnóstico,
o filme poderia ter redundado no mais frouxo humanismo (todo humanismo
é frouxo, nos ensina Foucault). Mas é preciso que não
se engane: Ninguém Escreve ao Coronel não é
um contracampo verde-musgo a uma realidade (futura, utópica) cor-de-rosa,
como no cinema de um Ken Loach, por exemplo. É, ao contrário,
o relato de uma condição existencial, de uma condição
patológica da existência que nos arrasta aos píncaros
da vulgaridade.
Ruy Gardnier
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