Netto Perde Sua Alma,
de Beto Silva e Tabajara Ruas

Brasil, 2001

Netto Perde Sua Alma é uma admirável novela de Tabajara Ruas, que ele mesmo se encarregou de adaptar com a ajuda do parceiro Beto Silva. Destacado escritor, Tabajara já tinha cruzado o caminho do cinema com a adaptação de Jorge Furtado e Giba Assis Brasil para um de seus contos mais famosos: O Dia em Que Dorival Encarou o Guarda, conto preciso, fechado, incisivo. Aqui ele narra um pouco da trajetória do general Antônio de Souza Netto, começando na cama de um hospital do Paraguai. Ferido depois de mais uma batalha, Netto relembra um pouco de sua trajetória épica, suas andanças pela rebelião republicana, sua "predestinação para a guerra".

Novo e ambicioso produto de um estado obcecado em resgatar seu passado, este filme com cara de super-produção regional partilha com seu personagem Netto um espírito comum: o espírito sonhador. Não há dúvidas que é uma obra carregada de grandes intenções. Desde as primeiras promoções publicitárias até o resultado o final, sempre se pôde sentir essa vontade evidente de espalhar a história entre o povo, de usar um meio reconhecidamente popular como o cinema para unir toda uma sociedade na reflexão de suas origens. A gente imagina os jornais discutindo a revolução farroupilha, o povo inteiro se reunindo nas exibições comunitárias e se emocionando com a saga de seus antepassados...enfim, tudo muito didático. Isso é bacana, mas também um tanto que perigoso : afinal, o assunto na tela é separatismo, e o medo maior é o de um estado cada vez mais fechado em si mesmo, bairrista como só ele sabe ser ainda mais que todos os outros deste país de dimensões continentais. Não que o filme faça, por ele mesmo, qualquer apologia revolucionária; nesse sentido ele é felizmente complexo(na verdade confuso) e imparcial, na medida que mostra os dois lados da "cousa". Mas todo mundo conhece o simplismo das interpretações e o festival de Gramado do ano passado foi o emblema dessa tese*.

O fato é que, mais do que confusões sociais e ideológicas, o que Netto Perde Sua Alma possui mesmo são obscuridades estéticas. Como se disse antes, um filme cheio de grandes intenções, e de grandes intenções, convenhamos, o mundo já está cheio. Na verdade, Netto não é nem um filme popular, nem um filme no estilo "arte e ensaio". A gente sente um grave problema de concepção : é como se, tentando agarrar diversas opções, os autores ficassem indecisos e um pouco atordoados, não sabendo que caminho escolher. Afundados na pretensão de fazer o panorama de uma parte da história do Rio Grande do Sul através da vida de um homem, Tabajara Ruas e Beto Silva acabam não sabendo que história contar, se é a de um estado ou se é a de um homem, ou ainda, forçando mais a barra, se é uma reflexão sobre guerra e condição humana, mesmo que longe de um Manuel de Oliveira e seu Non, ou a Vã Glória de Comandar. Tudo no filme é impreciso e os co-diretores parecem cada cena mais perdidos no seu próprio projeto. O que começa com jeito de drama existencial, muda para o realismo melancólico(a bonita e deslocada cena de Márcia do Canto lavando Werner Shunemann na banheira ou o acerto de contas na floresta entre Milonga e Caldeira, plano-sequência com cara de cinema urbano de protesto(?)), o onirismo pesado e artificial(o assassinato no quarto), o lirismo de guerra(as batalhas e aquela cena do rosto dentro d` água, com o contraste do vermelho do sangue visivelmente inspirado na abertura do Outsiders do Coppola) e ainda, claro, os efeitos poéticos(outra bonita cena de Netto e a bela moça do Uruguai colados no muro) e as alegorias enigmáticas (por que, deus, aquele close na aranha em plena batalha épica?! Eta artifício pesado!) Tremendas oscilações formais que, juntadas com a indefinição de uma idéia cinematográfica e filosófica, impedem uma unidade romanesca – parafraseando Jean-Pierre Gorin : "Todos os estilos, e, por isso mesmo, nenhum deles".

A impressão é a de que o filme foi dirigido por dez cineastas diferentes e ainda montado por outros dez – por sinal a montagem recebeu um prêmio questionável em Gramado 2001. Os atores, reconhecidamente talentosos, estão mal dirigidos, caindo numa teatralidade mal assumida. Algumas cenas tentam fazer renascer uma espécie de generosidade fordiana, lembrando aqueles velhos personagens humanos do lendário diretor, com os grandes sentimentos universais, os verdadeiros valores, mas tudo fica só na intenção. Resta, porém, um acerto : a identificação dos personagens com o ambiente, isso, sim, assaz fordiano. Os grandes espaços do pampa gaúcho funcionam as vezes como uma extensão do estado mental dos personagens, a maneira de um bom western. Talvez um dos poucos atrativos que impedem esse filme, ora indigesto, ora longo demais, de se transformar num aborrecimento total.

Bolívar Torres


1. Quando Tabajara foi receber o prêmio do público em Gramado, fez um discurso em tom grave : "Quem disse que Netto Perde sua Alma é um filme separatista está enganado!" Foi uma cena no mínimo engraçada, e a frase inflamada do escritor contrastou com o oba-oba dos apresentadores Betty Faria e José de Abreu, que naquela noite eram o reflexo em pessoa de uma cerimônia muito mais propensa à badalações do que à qualquer tipo de discussão. Foi, com certeza, uma das poucas manifestações polêmicas de um festival focado em tietagens e coquetéis e tradicionalmente avesso a politizações.