Nelson
Gonçalves,
de Elizeu Ewald
Nelson
Gonçalves, Brasil, 2001
Existem pelo menos duas maneiras clássicas a partir das quais se
pode analisar um documentário: no que ele traz de informação
em si, e no formato que usa para passar esta informação.
Claro que num primeiro olhar, trata-se apenas da velha dualidade/complementaridade
conteúdo e forma. No entanto, é um pouco mais complexo do
que isso no caso do documental, porque não se deve esquecer que
todo documentário se empresta um direito à "verdade", de
uma forma ou de outra. Assim sendo, o conteúdo é mais do
que apenas o que ele conta, e sim é a sua porção
da verdade, enquanto a forma é mais do que simplesmente como ele
conta uma história, e sim é como ele ordena a sua verdade.
Embora básicos, são preceitos importantíssimos de
se trazer sob a manga ao assistir um documentário.
No caso deste filme
de Elizeu Ewald ambos os fatores são dignos de discussão.
Primeiro, no que se refere ao conteúdo, pela inesperada fuga do
tradicional esquema "contar uma vida em uma hora". Não se nega
que ele tenta resumir em seus 72 minutos a vida de Nelson Gonçalves,
mas o que escapa pelas frestas do filme é que de fato ele é
muito mais um ensaio sobre o Brasil através de algumas décadas.
Porque a vida de Nelson serve apenas de interesse central, mas o que desfila
à nossa frente é muito mais um olhar sobre a relação
do Brasil com seus ídolos da música, ou ainda uma breve
história do rádio como meio de comunicação.
Embora possa parecer uma diferença sutil demais, na verdade é
ela que garante ao filme um constante frescor e interesse que possivelmente
um verborrágico ensaio sobre Nelson não teria. É
o Brasil que escapa por trás dos panos que realmente interessa
no filme.
E aí chegamos
à questão da forma. É fascinante a mistura de formatos
clássicos do documentário que o diretor faz, passando sem
cerimônia de um para o outro, o que acaba dando uma fluidez enorme
para a narrativa. Com isso, ele constrói alguns estatutos diferenciados
de acordo com a origem da imagem/som que ele usa, e o espectador consegue
apreender instintivamente as regras deste jogo. Com isso convivem imagens
de arquivo, depoimentos atuais, reconstituições, a narração
em off.
E, o principal: todos
eles são levemente subvertidos, não demais que cause estranheza,
mas o suficiente que empreste novidade. Por exemplo: as imagens de arquivo
tradicionalmente possuem o estatuto do fato, a cor local da época,
um retrato eminentemente documental de verdade indiscutível. Porém,
o diretor joga com estas imagens e ao invés de chatas, como muitas
vezes são, elas se tornam vivas, acima de tudo pelo inesperado.
A pesquisa de imagens é admirável, e o jogo delas sempre
surpreende porque elas adicionam significado ao que é dito, não
simplesmente ilustram. Muitas vezes as imagens não possuem relação
com a narrativa em off, que relata a vida de Nelson. Cabe a elas mostrar
o universo onde se desenvolvia esta história, e o jogo entre imagem
e som resulta riquíssimo. Também é interessante notar
como a reconstituição ficcionalizada de momentos da vida
do cantor não tenta atingir o registro de "fato", nem muito menos
construir personagens. Ela funciona sempre como um comentário,
um "causo", um "tableau vivant" que ilustra a narração.
Esta opção fica clara quando pensamos que Júlia Lemmertz,
que interpreta a mulher de Nelson, aparece em apenas duas cenas rapidíssimas,
praticamente sem falas. Não se constrói a esposa como nos
docudramas clássicos, ela não tem qualquer profundidade,
não é uma pessoa. É sim uma imagem, uma figura, que
ilustra a narração. Ela tem tanta importância enquanto
figura quanto uma das cenas de arquivo da época, quanto a praia
de Copacabana, quanto a Rádio Nacional. Este enfoque que iguala
coisas tão diferentes deixa clara a opção por uma
"despersonalização" dos fatos.
Sob o aspecto da linguagem,
também é interessante notar como nos depoimentos, diferentes
pessoas se colocam de formas completamente distintas. Enquanto alguns
parecem tentar dar a "versão oficial", com um discurso pronto e
armado, como o presidente da BMG ou alguns radialistas, "atuando" para
a câmera, outros como Lobão e Adelino Moreira seguem o ritmo
da memória, da subjetividade (não é que "Nelson era
assim", é assim que eu lembro do Nelson...), o que é de
grande ajuda em criar este clima informal que permeia o filme. E, cria
também dois registros que são espelhados no próprio
uso da narração em off, que possui duas vozes: o narrador
oficial dos "fatos", e uma voz do próprio Nelson, muito mais quente
e parcial com o que se vê.
Com isso tudo, o filme
consegue manter-se surpreendentemente informal, amoroso, quente. Como
o próprio Nelson, não esconde nada no que se relaciona a
drogas, e com isso ganha pontos contra os mais tradicionais retratos de
personalidades que tentam obsessivamente dourar a pílula. E consegue
suplantar pequenos defeitos como as cenas em que Alexandre Borges canta
com a voz de Nelson (a disparidade é demais para passar, e desnecessária),
contando com a ajuda de uma "kinescopia" excelente, que mal deixa perceber
sua origem digital. No final nem sabemos tanto assim sobre Nelson, o personagem,
mas o entendemos acima de tudo pelo que sabemos de sua época, de
sua vida, de seu país.
Eduardo Valente
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