Nelson Freire,
de João Moreira Salles

Brasil, 2003


Reticências da intimidade. Esse é o sentido em que João Moreira Salles constrói seu personagem-filme nesse pequeno exercício de sutilezas. Dono de um cinema muitas vezes pudico (e frio) na aproximação com suas personagens, João é autor de uma obra que flutua entre a habilidade de seu olhar cinematográfico e o peso do que poderíamos chamar de uma melancolia da objetividade. Em filmes como o badalado Notícias de Uma Guerra Particular ou o média Santa Cruz, há sempre um abismo entre a consciência da impossibilidade da objetividade e o desejo por descobrir um sentido moral para suas narrativas.

Consciente de seu lugar de cineasta formado nas tradições do documentário direto e do cinema de observação social griersoniano, João Moreira Salles sempre procurou nas vozes de especialistas e truques do melodrama (trilha sonora carregada, planos lânguidos) as muletas para a criação de teses que (se não se lançavam aos reducionismos sociologizantes), apostam na emotividade das imagens e na razão das palavras (as falas dos "especialistas") como instrumentos para a invenção um sentimento único de Verdade. Verdade que, mesmo que não se apresentasse como transcrição do real, ganhava os tons esterilizantes de um pós-moralismo (sentimental-lírico) enamorado de um niilismo inativo, onde restava ao cinema (e ao realizador) uma observação do mundo por trás de uma entristecida redoma de vidro. Cinema-Deus, talvez não mais o Deus manipulador do documentário clássico, mas um Deus piedoso a julgar seus personagens a partir de um humanismo viscoso. No cinema temático de João Moreira Salles (Drogas, Religiosidade, Futebol) nunca houve espaço para a aproximação de gestos, para a entrega interessada aos personagens, para a alegria do encontro... Elementos que fazem de Nelson Freire um filme precioso, e uma estréia memorável de João nas grandes telas.

É claro que a excepcionalidade do prodígio de Freire e o fato dele ser um personagem distanciado do jogo de responsabilidades morais e clichês sociais cultivados pela imprensa diária, deram a João Moreira Salles uma liberdade de expressão cinematográfica rara, que propiciou um outro tipo de olhar, um outro modo de cinema. Do olhar detalhista ao senso de humor (João Moreira Salles tem senso de humor!...) o filme é uma costura fina e adoravelmente doce dos fragmentos de um cotidiano (habilidades de criação poucas vezes vistas na obra do diretor). Não se trata, portanto, como poderiam imaginar alguns, de um filme que se amuleta na relevância de seu objeto-personagem; Nelson Freire encanta não apenas pela figura posta diante da imagem, mas na forma como roteiro, montagem e planos inventam um certo sentimento de estar-no-mundo, de se expor e se esconder (os planos que parecem "espionar" o pianista são belíssimos nesse sentido) sobre a máscara daquele homem rechonchudo, de olhos marejados, gestos reticentes e palavras poucas. Ao contrário de um cinema de aprofundamento da vida, Nelson Freire ama a máscara, a superfície, se interessa pelos gestos, pelas memórias compartilhadas, pelo olhar silencioso.

Nisso, lembremos da recorrência acadêmica de João Moreira Salles em apontar em Nanook (de Flaherty) o nascimento do que viria a ser o Cinema Documentário; por ser o filme onde se daria, pela primeira vez, a relação de amizade e enigma que caracterizariam a diferença entre a imagem informativa do jornalismo (ou dos cinejornais) e a criação do personagem de documentário. É fácil lembrar do rosto enigmático do esquimó de Flaherty nos longos planos de close-up de um Nelson Freire calado, olhos piscando, ao som da música que tanto o apaixona. Relação de silêncio que inventa no cinema de João o lugar (não mais melancólico, mas alegre), de uma amizade, de uma troca em que tenta abarcar/explicar o outro, mas se aproximar dele, olhá-lo de perto; onde a intimidade do outro não jorra para cima do olhar do cinema, mas se dá nessas barreiras, nessas máscaras cotidianas, nos rituais dos ensaios, na carta escrita por um pai. Indícios de uma política da amizade, de descoberta do outro sem o desejo de uma fundamentação de bem e de mal, de uma aprovação ou espelhamento. O outro, mantido como diferente , Nelson Freire, conta pouco, anda de um lado ao outro, mostra imagens de seus ídolos, suspira. Suspira.

Entre sequências longuíssimas do músico ao piano (o filme podia ser um pouco mais curto), João Moreira Salles consegue dar vida aos suspiros, ao suor dos ensaios, ao copo de água bebido após horas de um concerto extenuante. Sopro de uma alegria suave, nobreza de um cinema docemente afirmativo - sem tipos, sem falseamentos, onde a música encontra o lugar de sua expressão nos gestos de seu personagem. Não há um tema em Nelson Freire se não o dessa aproximação carinhosa, desses rastros de uma vida que se realiza entre os grandes aplausos, a canseira da fila de autógrafos, a preocupação da estréia ou a procura das partituras caídas sob um piano. Um filme sussurrado, pontuado do bom-humor das cartelas e dos fade outs, resumidos na beleza da sequência intitulada TV e que deve ser recordada:

Diante das tolices perguntadas pelo repórter-diretor de uma televisão francesa ("Como o fato do senhor ser de um país quente influencia em seu modo de tocar?", por exemplo) , Nelson Freire foge com o olhar e acha na câmera da equipe de João um instante de cumplicidade. O silêncio de Freire e do filme (fade out) nesse momento são característicos de um cinema nem direto (imparcial) nem interventor (dirigista), mas que se dá no lugar limítrofe dos olhos que se cruzam.

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Sem dúvida, o melhor filme de João Moreira Salles - renovando a expectativa sobre uma obra que já parecia domada pelos padrões de sua própria "qualidade".

Felipe Bragança