A Mulher e o Atirador de Facas,
de Patrice Leconte


La Fille sur le Pont, França, 1999

Pequenos gestos, pequenas vontades, vontades que não se justificam, que não se definem. Personagens que não querem muito, mas que, em seus pequenos desejos, tornam-se únicos, quase fabulares... Vanessa Paradis (a suicida) fala à câmera, numa espécie de interrogatório espaço temporal indefinido – como sua consciência antes do salto (ou depois...). A suicida não sabe explicar o que sente, seus atos não procuram por nada, não constróem nada. A personagem não se submete à lógica causal do desejo – pois quais seriam seus motivos, suas intenções? Ela mesma responde: esperar que alguma coisa lhe aconteça. Como um inverso ao comodismo lógico, que espera do mundo aquilo que se encaixa em seus preceitos. Uma vontade de objeto disperso, um querer através. Como em O Marido da Cabeleireira, em que o homem espera por quarenta anos até encontrar a cabeleireira com que prometera a si mesmo se casar; em A mulher e o atirados de facas, o atirador procura sua "sorte" numa incansável peregrinação pelas pontes e suas suicidas. Atirador (um ótimo e carrancudo Daniel Auteuil) e Alvo se encontram e se complementam, se unem – são solitários e medíocres personagens que se tornam extraordinários por estarem juntos (como o Homem e a Cabeleireira de O marido...). Estabelece-se , no encontro dos dois, um terceiro ser ( a sorte de que fala o atirador) – terceiro ser que não é a diluição dos dois, mas o elemento a mais, um terceiro múltiplo. Uma paixão criativa, que potencializa os personagens – não uma fome a ser saciada, mas uma forma de tornar a fome um infinito.

Leconte fala disso: de um relacionamento humano como possibilidade de se enxergar nos pequenos gestos, mais humanidade do que nos grandes feitos. O prazer que o Atirador e seu Alvo vivem juntos está no limite do risco, do absurdo – como o absurdo do Marido que fetichiza o corte de seu cabelo... A relação entre dois seres medíocres se torna extraordinária não por uma mera ode ao simples, ao individualismo medíocre; mas por uma homenagem ao que há de fabular nos pequenos momentos de "sorte"... Uma sorte que não lhes é entregue, que é inalcançável em absoluto – "a sorte não se ganha, a sorte se faz..." diz o Atirador; e se faz sem clareza dos atos, e se faz sem o fardo da verossimilhança. Uma fábula sobre a potencialização do ser humano, do valor de seus desejos – as almas gêmeas que se encontram brincam de acreditar no contingente, se divertem ao perceber (em tom irônico) que não podem viver sem estar com o outro. Seus objetivos, o modo de encontrar seu desejo, são estranhos, simplistas; e muitas vezes o que se deve fazer para alcança-los, são atos ridículos... Como em Ridicule, em que o personagem central muda sua vida e se presta ao ridículo para conseguir uma obra de drenagem em suas terras. Uma vontade medíocre mas que se potencializa pela maneira com que se deseja o desejo.

A mulher... não passa de um romance, de uma história simples de amor entre duas pessoas. Mas é disso que Leconte vem tratando em grande parte de sua obra recente: narrativas simples que tem seu valor no modo com que seus personagens e seu diretor se colocam nela. Tudo se converge em uma fábula em P&B, com seus elementos circenses e a reincidente montagem crítica de Leconte (ora clássica, ora fazendo comentários sobre a narrativa). O absurdo cria um espaço de cumplicidade com o espectador , nada ali é crível, nada é gratuito. A câmera está ali como uma mosca na parede ("a fly in the wall"), mas o Atirador a percebe e nos observa – temos o plano ponto-de-vista da mosca e finalmente a vemos na parede. Como se o personagem não se entregasse a mise-en-scène , mas participasse conscientemente de seu estabelecimento (a cena em que o Atirador pede ao alvo que escolha e que mão está o colar, mas guarda um colar escondido em cada mão). O que o filme mostra não é uma realidade, mas um sentido. Uma ode irônica ao destino, uma ode ao diálogo e aos relacionamentos humanos como fontes criadoras. Diálogo, que ausente na paixão entre o Marido e a Cabeleireira não impediu que esta se jogasse da ponte; e que, em A mulher... interrompe o salto do Atirador. Na cena final em que os dois, num passe de mágica, estão novamente "condenados" a estar na mesma ponte...

Felipe Bragança