Moulin
Rouge Amor em Vermelho,
de Baz Luhrmann
Moulin Rouge, EUA/Austrália,
2001
Depois de anos de
realismo cinematográfico, de naturalismo nas ambientações,
de utilização de locações, o estúdio
parece estar voltando a ser elemento fetiche de alguns dos novos diretores
de cinema. O primeiro é Tim Burton, que desde seu começo
aposta num cinema de fantasia, em que os cenários irrealistas dão
a devida dimensão de fábula a relatos que aparentemente
poderiam não ser encarados como tais (uma vez que ele subverte
vários princípios do conto de fadas). Em alguns momentos
de Moulin Rouge, graças à eficácia da computação
gráfica e das imagens de síntese, além de um gosto
cinefílico pelo grande espetáculo à antiga (Busby
Berkeley e Vincente Minnelli nos vêm à cabeça mais
de uma vez), parece que o poder da inventividade de estúdio, do
poder evocativo das imagens e das iluminações especiais
do estúdio estão de volta à pauta-do-dia do cinema,
depois do pequeno surto de neon-realismo dos anos 80 (Carax, Beineix ou
Almeida Prado aqui).
Mas Moulin Rouge
não é o triunfo que se esperava de uma aposta estética
dessa espécie. Pois malgrado estabelecer um imaginário (o
cinema de Hollywood dos anos 50), uma assinatura (impossível não
reconhecer de primeira as imagens de seu autor) e um gosto pelo detalhe
que em momentos consegue extrair enfim alguma beleza da enchurrada de
cores & babados & movimentos de tudo aquilo que está diante
da tela, o filme de Baz Luhrmann não convence.
A começar por
sua proposta. Dar o nome de "moulin rouge" a um filme onde tudo o que
vemos é um pot-pourri da cultura americana dos anos 60 pra
cá, um caldeirão de referências à cultura pop
onde desfilam Paul McCartney, Elton John, Nirvana, Fatboy Slim, Marylin
Monroe, Madonna, David Bowie, entre outros: qual o propósito disso?
Um elogio do espetáculo? Certamente, a própria peça
que os personagens do filme ensaiam e encenam se chama "Espectacle, Espectacle".
E o filme tenta de fato ser uma homenagem ao espetáculo pelo espetáculo,
uma profissão de fé (que sem dúvida é a fé
de Baz Luhrmann como diretor de cinema) nos poderes de fabulação
da arte, na criação de mundos partilháveis com um
público. Mas é aí que o filme falha. Porque, mesmo
tendo dois níveis de metalinguagem que povoam a narrativa (a história
de Moulin Rouge é uma metáfora da criação
artística de grande custo, sempre na obrigação de
ter um mecenas filisteu, e o próprio filme é uma homenagem
aos poderes da arte), o filme não consegue emplacar nem aquilo
que deveria ser seu primeiro item na ordem de importância: seduzir
o espectador pelos dois protagonistas e pela história de amor a
ser contada.
Quanto a esta, trata-se
do seguinte: um artista chega à França para ser artista
e encontra-se com Toulouse-Lautrec, que faz dele escritor de uma nova
peça. O recém chegado apaixona-se pela deslumbrante cortesã
que se apresenta quando ele acaba de chegar no Moulin-Rouge. Por uma divertida
peripécia, a cortesã apaixona-se por ele quando, na verdade,
deveria cair de amores por um terrível duque que passaria a patrocinar
o teatro e sua carreira teatral. A cortesã é uma metáfora
para o cinema, presa entre aquele que a ama de fato (o artista) e aquele
que só a deseja a título de exibição e cobiça
(o produtor, o mecenas). A metáfora é tão mais clara
quanto o capanga do mecenas tem o singelo nome de Warner.
A câmera de
Baz Luhrmann sempre fica tempo de menos, sempre fixa muito pouco
em cada coisa. Antes de sermos devidamente apresentados aos personagens,
já se nos pede um grau de identificação que ainda
não temos. Sabemos, por exemplo, dos primeiros vestígios
de tuberculose na personagem de Nicole Kidman (ela tosse logo em sua primeira
apresentação), antes de inclusive nos ser dada a oportunidade
de simpatizarmos com ela, e nos compadecermos de sua dor. O que ainda
nos remonta a algo mais curioso: a opção por fazer de Moulin
Rouge um musical onde se readaptam diversas canções pop
a partir de "Diamonds Are A Girl's Best Friends" até "Smells Like
Teen Spirit" – o que gera muita curiosidade e graça pelo inesperado
da tentativa – só consegue nos distanciar mais ainda daquilo que
está se desenrolando na trama. Como acreditar no amor de Christian
e Satine (Ewan McGregor e Nicole Kidman, os dois convenientemente graciosos
e exuberantes) quando eles se fazem declarações cantando
"Heroes", de David Bowie, com as letars todas rearranjadas? É riso
geral na platéia. Assim, da mesma forma, risada quando o "Diamonds"
de Marylin se mistura ao "Material Girl" de Madonna ou quando "All You
Need Is Love" dos Beatles se mistura a "Love Is A Many Splendoured Thing"
que se mistura a "Your Song" (Elton John), música que recorta toda
a narrativa.
O estilo de Baz Luhrmann
nos força a pensar um pouco. Afinal, ele é um ótimo
artesão, um eficiente técnico, tem um domínio e uma
acurácia visuais invejáveis no cinema de hoje. Mas o dispositivo
instaurado por seus filmes, seja Romeu e Julieta seja Moulin
Rouge, simplesmente não conseguem criar ficção,
não conseguem estabelecer um elo imaginário com o espectador
a não ser a concordância de que realmente Baz Luhrmann é
um "excelente diretor". Seu estilo, seu gosto pelo detalhe e pelo (a)berrante,
está algum lugar entre Peter Greenaway, Jeunet e Caro em Delicatessen
e um carnavalesco de escola de samba. Um turbilhão deslumbrante
de imagens, mas que cede muito pouco àqueles que estão de
fato assistindo ao filme, um virtuosismo mergulhando no vazio, que se
conjuga ao elogio do espetáculo pelo espetáculo. Um tecnicismo
quase publicitário, um videoclip de duas horas com música
afetada (parece aqueles discos de orquestras rearranjando músicas
dos Beatles ou do Led Zeppelin). Se há dois filmes a aproximar
de Moulin Rouge para tentar compreendê-lo melhor, são
Titanic e Velvet Goldmine. No primeiro, vê-se um conservadorismo
da narrativa, mas um conservadorismo instrumentalmente aplicado para seduzir,
criar um mito, um imaginário na cabeça do espectador. James
Cameron é devoto dessa história. Da mesma forma, Velvet
Goldmine, mesmo sendo um zilhão de vezes mais sofisticado narrativamente,
incorporando inclusive dados de estranhamento (a referência narrativa
a Cidadão Kane), é um filme que mostra devoção
a alguma coisa, a saber, à música glam e ao mundo
que ela instaura. Em Moulin Rouge, não há poder de
instauração, nada sabemos do amor de Christian e Satine,
não saímos com uma imagem em nossa cabeça. Sabemos,
entretanto, que Baz Luhrmann é "excelente", que domina quase demiurgicamente
o mundo que encena. E nada mais. O espetáculo pelo espetáculo,
longe de ser um elogio à realidade que a arte instaura, é
um mero joguinho de belezas auto-evidentes funcionando no vazio de sua
feitura.
Ruy Gardnier
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