Vida
que Segue,
de Brad Silberling
Moonlight
mile, EUA, 2002
O que se pode esperar do próximo filme de um autêntico mestre
do cinema como o autor de Gasparzinho e de Cidade dos anjos
(sim, aquela refilmagem inacreditável de Asas do desejo
com Nicolas Cage e Meg Ryan). Quase nada, não? Pois esta pode ser
uma das vantagens deste Vida que segue: num primeiro momento nada
se espera dele. No entanto, dado os ótimos resultados conseguidos
no filme, certamente se esperará algo do próximo filme de
Silberling.
Sem qualquer tentativa
de realizar uma análise de cinema à la revista Caras, há
um fato absolutamente essencial na biografia de Silberling, pelo que vemos
em seus filmes: em 1989 a atriz Rebecca Schaeffer, sua namorada na época,
foi assassinada. Ora, se sabemos que Gasparzinho (que até
este fato podia parecer tudo menos um "filme de autor") trata de um fantasma
tentando manter contato (e até uma história de amor) com
pessoas da Terra; e que seu segundo filme era sobre o amor entre um anjo
e uma mulher ainda viva; portanto, fica muito difícil não
ver quanto o tema da morte, e do legado que os mortos deixam, o persegue.
Afinal, este seu novo filme é sobre uma família tentando
sobreviver ao assassinato de sua filha de 20 e poucos anos (a namorada
do diretor tinha 22 ao ser morta), e não só isso, como também
é contado principalmente pelo olhar do seu namorado. Pois aparentemente
Silberling chegou tão perto de sua própria experiência
que conseguiu realizar um filme extremamente raro na Hollywood de 2002:
um drama que consegue ser engraçado (sem cair na piedade pelos
seus personagens, nem na frivolidade cômica), e que não procura
nenhuma das saídas fáceis mais comuns no tratamento de seus
personagens e situações.
Um filme que parece
essencial ter-se em mente para entender este Vida que segue é
A primeira noite de um homem, de Mike Nichols, que realizou um
dos mais impressionantemente vivos e carinhosos retratos da confusão
que é ser jovem, ter que decidir o que se quer da vida e ainda
lidar com os fatos do dia a dia. O personagem de Jake Gyllenhaal neste
novo filme parece uma verdadeira atualização das questões
levantadas por Benjamin, protagonista do filme de Nichols, em 1967. Além
da relação entre esses dois personagens, é impossível
não pensar mais ainda no filme porque quem interpreta aqui o pai
da menina morta é Dustin Hoffman, protagonista do filme de Nichols.
E não é nem um pouco difícil enxergar seu personagem
como Benjamin (vocês acertaram: o personagem se chama Ben), 35 anos
depois, lidando com as escolhas feitas na sua juventude.
Mas, talvez o maior
ponto de contato entre os dois filmes esteja acima destas questões
de conteúdo: está na forma narrativa escolhida pelo diretor.
Assim como Nichols, Silberling consegue permear seu filme de um inesperado
senso de humor, mesmo quando lidando com as questões mais graves.
E, também, de um humanismo latente, que passa não apenas
pela compreensão, mas também pelo carinho com os seres humanos
em toda sua falibilidade. Não há em Vida que segue
um só personagem cujo comportamento seja convencional, esquemático:
há inúmeras cenas absolutamente inesperadas e diálogos
sutis cheios de ironia e amor.
Em alguns momentos
seu cinema nos lembra o de Wes Anderson, embora com bem menos "obsessões"
visuais ou opções radicais de mise-en-scène, mas
principalmente pelo trabalho numa chave um tom (talvez Anderson vá
a dois ou três) acima do naturalismo. Há inclusive o mesmo
senso de anacronismo, que faz com que tenhamos dificuldade de localizar
temporalmente os filmes. É verdade que no meio do filme fica mais
claro que estamos no início dos anos 70 (o que quebra a idéia
do Ben ser o mesmo Benjamin envelhecido, e sim uma versão mais
velha do personagem, sem sê-lo), mas o tom é bastante semelhante
ao dos filmes de Anderson, até pelo uso de Van Morrison na trilha,
que embora contemporâneo da ação, dá um clima
diferente.
A forma com a qual
ele opta por começar o filme é bastante sintomática
do seu cuidado narrativo: percebemos a trama que está posta antes
de encontrarmos os personagens (a filha morta, etc) muito menos por uma
"narração" explicativa e sim por pequenas frestas e pistas
que vão se somando. Logo, quando partem para o enterro, já
sabemos muito dos personagens pelos seus pequenos atos. E são pequenos
atos, palavras, expressões que vão nos dando pistas de quem
são eles. Todas as relações do filme são complexas,
de difícil entendimento no sentido mais "convencional", como aliás
costumam ser na vida. É especialmente bela as cenas que envolvem
o casal dos pais, interpretados por Dustin Hoffman e Susan Sarandon com
uma energia que não se via há algum tempo.
Mas é inegável
que a força central do filme (como era o caso no A primeira
noite de um homem) emana do protagonista, tanto ator quanto personagem.
A confusão por que ele passa está em cada olhar, em cada
gesto, em cada palavra: como se faz para manter ou não os planos
feitos antes de um acontecimento como a morte de sua futura esposa? Como
lidar com os que ficam (como os pais dela), e suas expectativas? O filme
não foge de nenhuma dessas questões. E mesmo na única
cena que pode parecer mais forçada (a do tribunal), não
abre mão de uma enorme generosidade de olhar, o que, se colocado
lado a lado com um Entre quatro paredes e sua culpabilização
odiosa, por exemplo, não é característica a ser desprezada
de forma alguma.
Silberling não
abre mão de ver na tragédia uma ironia, ou de enxergar na
vida uma magia que perpassa os piores e os melhores momentos, os tornando
parte de um mesmo todo. É este seu olhar que faz seu filme estar
muito acima da média dos anos 90/2000 em Hollywood, onde a produção
mais "séria" torna-se cada vez mais piegas, boba e reducionista,
relegando aos outsiders e aos autênticos filmes de gênero
todo interesse do atual cinema americano. Que ele possa continuar no caminho
de retomar uma produção que consiga conectar comunicação
com público e temáticas corajosas com inteligência
e sutileza.
Eduardo Valente
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