Monstros S.A.,
de Peter Docter e David Silverman

Monsters Inc., EUA, 2001


Delicadeza na criação das personagens. Inteligência na construção da narrativa. Monstros S.A. traz um pouco de tudo o que a Pixar e seus realizadores trouxeram para a animação norte-americana nos últimos anos: a capacidade de criar histórias com subcamadas narrativas capazes de conquistar as diversas nuances do público na sala do cinema. Há desde os elementos clássicos da animação de atrações físicas (quedas, saltos, movimentos, explosões), até a fina auto-ironia narrativa que faz dos monstros metáforas dos próprios animadores. Dessa forma, o filme consegue ser tanto um espetáculo visual extraordinário (a seqüência das portas e a textura dos pêlos de Sullivan são impressionantes), num primeiro momento, como um inteligente jogo sobre a indústria do entretenimento norte-americano e a internet (a rede de armários conectados...).

A relação de pavor mútuo entre os monstros e as crianças é um grande achado narrativo e funciona como atrativo pelo inusitado e uma interessante mensagem de descoberta do diferente. Para além da, auto-proclamada, revolução de Shrek, em Monstros, os bichos feiosos não são bons camaradas "apesar" de serem monstros, mas tem nuances de personalidade indiferentes à sua monstruosidade. Ou melhor, o filme não faz dos monstros "grosseirões-gente-boa" como Shrek, mas trata-os como personagens complexos e não atrelam diretamente sua aparência monstruosa à personalidade.

As excelentes dublagens de John Goodman e Billy Cristal trazem firmeza e personalidade aos personagens e a criação de Bu beira a perfeição. Não uma perfeição mimética, mas um espetáculo onde a diversão é observar o quanto aquela criatura animada consegue se tornar autêntica como os próprios monstros imaginados. A amizade entre Sullivan e Bu tem uma beleza muito parecida com aquela trabalhada em Toy Story, entre o menino e o cowboy Woody: trata-se de uma observação do processo de crescimento de uma criança, do modo como seus mitos vêm e passam, de como é a relação entre a menina e seus sonhos, o medo do armário escuro, os amigos da infância que se perdem. Sullivan representa todos os medos e fantasias infantis, do modo como elas se tornam íntimas e como surgem e se transformam.

A descoberta por parte dos monstros de que era possível colher sua energia vital através de um processo de carinho (piadas, risos...) e não de horror em relação às crianças, é a resposta do filme para a violência e a agressão como forma de sobrevivência. Mas essa solução não se dá por uma bondade intrínseca aos monstros, não há uma bondade descoberta, mas se dá pela inteligência e possibilidade de descoberta no outro, diferente e estranho, a possibilidade de alguém a ser respeitado, descoberto e com quem, mais do que uma submissão, pode ser possível criar uma relação acordo mútuo, de amizade pela diferença. A ingenuidade afetiva do filme se resume de forma simples no fade out silencioso que fecha o filme, quando Sullivan volta ao quarto de Bu e, chamando por seu nome, ouve a menina responder: "Kitty"...

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Tipo de filme infantil raro nos dias de hoje por saber que inteligência e reflexão não se resumem a doses cavalares de sarcasmo... Aliás, talvez esse seja o maior mérito do filme: saber ser auto-irônico sem cair num sarcasmo infrutífero como o de Shrek, onde as crianças aprendem que os gordos são porcos, grosseirões e engraçados... E que os contos de fada são ridículos, e que tudo não passa de uma grande piada sarcástica rumo a um final ultramoralista e auto-excludente onde feios e burros são amigos de feios e burros.

Com a supervisão de John Lasseter (criador de Toy Story), Monstros S.A. foi a melhor resposta que a Pixar/Disney poderia ter dado ao moralismo disfarçado do ogro verde de Spielberg.

Felipe Bragança