Missão:
Marte,
de Brian de Palma
Misson
To Mars, EUA, 2000
Tudo
flutua em Missão: Marte de Brian de
Palma
De Palma e os limites
do humano
Uma imagem não
sai da cabeça desde o momento que se senta na cadeira do cinema
e começa a projeção de Missão: Marte.
É Ethan Hunt, personagem vivido por Tom Cruise em Missão
Impossível, que "flutua" sob um chão que não
pode ser tocado. Pois em Missão: Marte tudo flutua. Brian
de Palma tem gosto em forçar situações "maravilhosas"
do humano, tem gosto pelas peripécias da tecnologia e pelos múltiplos
acoplamentos que o homem com ela realiza. Missão: Marte
parece atingir um ponto de retenção na obra de De Palma:
não se trata, como bem se poderia pensar (e a mídia cinematográfica
não deixou de fazê-lo o tempo todo), de um filme mal-realizado,
lento, sem ritmo sobre ficção científica. Ao contrário:
é um filme ágil, dinâmico e extremamente bem encenado
sobre as possibilidades do humano, aí incluídas todas as
suas técnicas (o que implica a própria técnica do
diretor, o "fazer cinema"). Missão: Marte é
um filme de ficção científica tanto como Duna
de David Lynch o é ou como Olhos de Serpente, do mesmo De
Palma, é um filme de ação. Um filme de um grande
cineasta, por mais associado ao "gênero" que seja, nunca
deixará de ser um filme autoral, moldado pelo seu próprio
universo e jamais pelas injunções do mercado ou do gosto
médio. Talvez por isso, Missão: Marte, assim como
Duna, tenha sido um fracasso no box-office.
Toda a problemática
recente de De Palma encontra-se perfeitamente delineada em seu novo filme.
Depois de Carlitos' Way, todos os seus filmes seguintes parecem
tratar especialmente de um tema: das assombrosas coisas de que o homem
é capaz. Essa é a famosa fórmula de Sófocles
na fala mais notável de sua Antígona, mas parece
perfeitamente adaptada à problemática do cineasta de Missão:
Marte: pois seu imenso desejo de captar as novas realizações
do homem não vai no sentido de um maravilhamento idealizado
o heroísmo de um homem mais que humano ou a preocupação
paranóica do homem com o domínio das máquinas
mas de um maravilhamento com o próprio humano e suas novas possibilidades
sensoriais (que são, bem entendido, as que mais importam ao seu
cinema). Daí as grandes cenas em que o casal de astronautas dança
no vácuo, os grandes travelings em que a câmara brinca
com a gravidade de cabeça-para-baixo ou as balinhas de M&M's
flutuando e fazendo um modelo de DNA da "mulher perfeita". Pois
Missão: Marte está muito menos preocupado com o heroísmo
tolo dos filmes de ficção científica do que em tentar
mostrar, com um ritmo propriamente humano, a vida e os dilemas pessoais
dos personagens.
A primeira cena já
coloca tudo em cena: o feliz casal de cineastas, o astronauta negro que
terá que separar-se de sua família para viajar e o talentoso
piloto e astronauta que perdeu a mulher num acidente e abalou-se a ponto
de desistir da profissão. A primeira missão a Marte sofrerá
um imprevisto fantasmagórico que matará quase todos (só
se salvará o chefe da missão), e uma missão de resgate,
restaurando a posição ao ex-astronauta, deverá partir.
Mais que um resgate, essa missão deverá descobrir o que
causou a morte dos outros astronautas. Mas antes de preocupar-se com a
lógica da narratividade, De Palma trabalha sobretudo nas
naves e em Marte com a idéia da arte plástica contemporânea
de instalação. Pois o que é buscado, mais
que uma historinha boba sobre os marcianos sendo o povo que deu origem
à vida na Terra, é possibilitar uma vivência sensorial
do cinema, o cinema como aquilo que ele foi desde que o trem dos irmãos
Lumière quase atropelou os espectadores do cinematógrafo:
espaço para alienação e experimentação
de espaço e tempo. Dessa forma, nada mais apropriado do que o filme
culminar com uma instalação dentro da instalação,
a partir da entrada dos astronautas no estranho santuário que explicará
toda a colonização que o povo "superior" fez na
Terra e seu porquê. Cena de puro cinema, como o cinema americano
e conseqüentemente nenhum outro cinema do mundo, por grana
e por vontade não sabe mais fazer hoje. O branco
absoluto é substituído pelo preto total, e daí toda
uma história do universo e da destruição de Marte
são experimentados sacralizadamente, musicalmente, uma tentativa
de cinema puro que bem poderia remeter às tentativas de cinema
dos dadaístas (Duchamp, Hans Richter) ou surrealistas (René
Clair, Jean Cocteau) ou ainda do underground americano (Maya Deren ou
Jonas Mekas).
Ao sempre dar conta
da importância das possibilidades inerentes à plasticidade
do cinema, à sua capacidade de criar novas ambiências e de
se fazer experimentá-las, sempre ciente da capacidade do cinema
de criar mundos, Brian De Palma é um dos poucos a transformar
o cinema em acontecimento, em fazer de cada seqüência e
cada plano uma espécie de filme dentro do filme, uma música
interna inerente a cada momento filmado. Daí seu gosto sempre incompreendido
pela homenagem, sempre aos seus cineastas-ícone, igualmente cineastas
do acontecimento: Alfred Hitchcock e, em Missão: Marte,
Stanley Kubrick. Daí um gosto indisfarçado pelo cinema como
possibilidade de construção de imaginário, como criação
de novas possibilidades de experiência. Isso tudo pulula em Missão:
Marte, e isso tudo faz relevar certos momentos melodramáticos,
como a lágrima do extraterrestre ou o sofrimento de Gary Sinise,
um tanto esquemáticos. Porque aquilo que acontece no segundo plano,
no plano da realização, é tanto mais importante que
é possível se perder no prazer de olhar e nunca mais se
achar...
Ruy Gardnier.
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