Missão
Impossível 2,
de John Woo
Mission: Impossible 2,
EUA, 2000
A cena
em que "tudo pára": Missão
Impossível 2 de John Woo
1. In order to create
a hero... "Para se criar um herói, é preciso primeiro
que se crie um vilão". Essa frase aparece três vezes
em Missão Impossível 2, sempre através do
depoimento do professor russo que criou um vírus letal, Quimera,
e seu antídoto, Belerofonte. Mas, antes de falar propriamente desses
vírus, é da própria construção do filme
que a voz do professor fala: para criar um grande herói
Ethan Hunt, o agente da MI é preciso criar um poderoso inimigo
Sean Ambrose, ex-dublê do próprio Hunt que verteu
para o lado do crime. A prática de falar de um filme dentro dele
próprio, muito em voga no cinema americano a partir de O Último
Pesadelo de Freddy e Pânico, ambos de Wes Craven, readquirem
aqui seu sentido necessário é lúdico: estabelecer
as regras do jogo, apresentar as cartas ao espectador. Para além
das "filosofias do espetáculo" que tentam tolamente erigir
um Ridley Scott ou um Oliver Stone, a citação num filme
de John Woo (assim como nos filmes de Wes Craven, em À Beira
do Abismo de John Carpenter e eXistenZ de David Cronenberg)
tem uma outra função: ela entrega ao espectador o seu manual
de instruções e o modo de operar.
2. Quem é cover
de quem? Ainda estamos na primeira seqüência do filme.
O tal professor russo injeta o tal veneno em seu próprio corpo,
mas precisa garantir que vai tomar o antídoto dentro das próximas
20 horas. Para isso, ele confia em Dmitri nome russo de Ethan Hunt.
Só que Dmitri/Hunt não pode ser achado, e é o duas-faces
Ambrose que é mandado. Ambrose, mascarado de Hunt, seqüestra
o avião com mais alguns comparsas, rouba a mala, mata o professor
e faz o avião explodir nas montanhas. A primeira regra do jogo
é: será um jogo de máscaras, à maneira de
Face/Off, último longa-metragem de Woo. Dessa forma, Missão
Impossível 2 não é, de maneira alguma, seqüência
do Missão Impossível de Brian de Palma, mas sim de
A Outra Face: um jogo em que, para se sair vencedor, tem-se que
desempenhar bem não só o seu próprio papel, mas igualmente
o papel do outro. John Woo é mais adequado ao "projeto MI"
do que De Palma. Pois o que sempre interessou a De Palma foi o cinema
como olhar, como uma espécie privilegiada de voyerismo, logo um
cinema de contemplação e hipnose da imagem em movimento.
Daí a mais bela cena do primeiro MI não ter propriamente
ação, mas Tom Cruise dependurado num fio tentando realizar
uma operação de computador. Se essa cena é apenas
a preparação para Missão: Marte, a intriga
de A Outra Face é a preparação para Missão
Impossível 2.
3. Não é
difícil... é impossível! Continuando com as regras
do jogo, uma segunda seqüência (a seqüência dos
créditos) nos mostra Ethan Hunt na pele do próprio
Tom Cruise e não na de um dublê... em todas as suas recentes
entrevistas Cruise faz questão de dizê-lo escalando
uma montanha íngreme numa paisagem magnífica. É claro
que, em determinado momento, ele tropeçará e ficará
preso apenas por uma das mãos. Com uma manobra espetacular, ele
conseguirá fixar sua outra mão na pedra e, não sem
antes dar uma olhadela malandra para a câmara, pular cinematograficamente
e voltar a assumir uma posição segura. Regra 1: jogo de
máscaras. Regra 2: não creia na verossimilhança de
nada disso aqui... tudo isso é impossível. Se a primeira
regra só nos mostra o "assunto" da brincadeira, a segunda
é mais profunda: estabelece seus princípios. Desnudando-se
da relação de verossimilhança, o cinema pode atingir
aquele lugar privilegiado de relação com os corpos que tem
o desenho animado: a imagem em movimento não como reconstituição
de uma realidade exterior, mas como lugar de experimentação
dos corpos (muito embora essa remissão à realidade exterior
no fundo sempre permaneça tanto por trás do desenho animado
quanto por trás dos filmes de "pura ficção"
é sempre um retrato do humano que se busca).
4. Som e fúria.
Terminados os créditos, vamos ao começo da história
propriamente dita: Ethan Hunt vai a Sevilha para encontrar Nyah Hart,
uma poderosa ladra de jóias por quem Ambrose é apaixonada
(isso só saberemos um pouco mais tarde). A cena em que Hunt observa
Nyah pela primeira vez nos dá a última regra que faltava.
Tomemos a cena: numa suntuosa casa sevilhana, a platéia assiste
a uma dança deslumbrante, com um sapateado que encanta igualmente
os ouvidos. Hunt dá de olhos com Nyah, Nyah dá de olhos
com Hunt. Múltiplos campos e contracampos nos revelam o que faltava
saber a respeito do filme: o que interessa a John Woo é mostrar
não o espaço extensivo em que decorrem as ações
dos corpos o espaço, ele já mandou às cucuias
quando decidiu não mais remeter à verossimilhança
, mas o espaço intensivo das sensações. Para
isso, ele só tem duas soluções (e as realiza à
maravilha): utilizar o som como espaço privilegiado da intensidade
e o quadro aquilo que a imagem mostra sempre da forma mais
fantasística possível. Regra 3: Para o extensivo, precisamos
de um máximo de realidade; para o intensivo, precisamos de seu
mínimo. Regra 31/2 (na verdade, apenas um
corolário da R3): Precisamos de criatividade.
5. Fogo sagrado. É
como é realizada essa seqüência do primeiro encontro
de olhos entre os dois, que bem poderia ser "realista" ou naturalista,
uma vez que esse tipo de interpretação sempre aproxima mais
o espectador do personagem. Mas nada disso em John Woo: com o auxílio
de um fogo que queima perto da dança, das dançarinas e da
poderosa música sapateada, todos os planos que se desencadeiam
são todos fantasísticos e, em um dizer que bem poderia ser
recuperado, "de invenção". Woo perfura a tela
com os corpos das bailarinas, com as chamas e com a música "quente"
da Espanha. Nyah e Ethan Hunt estão separados do mesmo plano, mas
por toda a orquestração montada por Woo fogo, dança,
corpo de bailarina , saberemos que eles manterão uma tórrida
relação amorosa
6. John Woo regente.
Missão Impossível 2 é todo musical, não
apenas pelo fundo musical que ultrapassa todo o filme, mas por uma lógica
própria
de composição. Os personagens e as situações
valem mais pelo seu poder de encadeamento a sua força "harmônica"
do que por uma rígida lógica psicológica ou
realista. A esse respeito, a seqüência final, que começa
a partir do momento em que Hunt foge do covil dos vilões, é
exemplar: a música começa a tocar forte, num crossover
de metal com música eletrônica, e Tom Cruise inicia suas
peripécias, que são igualmente musicais, ou seja, abstratas,
de pura intensidade. Poderíamos reclamar da lógica toda
da cena: construída para forçar as situações
de perseguição, tiroteio, luta física no final, enquanto
a amada de Hunt precisa urgentemente da sua presença. Mas diante
da proposta de Woo, a de realizar um jogo de experimentações
espaciais com o espectador, a reclamação cai por terra e
nos resta o poder de sedução de uma imagem criada por um
mestre das formas. Um diretor musical.
7.
Suspensão. Um momento breve de Missão Impossível
2 fica na memória mais que os outros. É quando, no meio
de uma perseguição, Ethan Hunt dirige uma motocicleta e
em sua perseguição vem um carro branco. Num determinado
momento, Hunt, apoiado na roda dianteira de sua moto, roda seu veículo
para ficar de frente para o carro e balear o tanque de combustível.
Nesse momento, tudo pára (inclusive som) e, num mecanismo incrível
de montagem, os dois veículos rodam no silêncio, até
que finalmente os tiros podem ser dados e Hunt poderá seguir sua
missão. Essa cena ainda remete a uma cena anterior do filme, quando
o herói da Missão Impossível roda seu carro para
salvar Nyah da morte certa. Mesmo a amada ausente nesse momento
ela se prepara para a morte , o mecanismo de direção
de Woo a faz retornar à cena.
Ruy Gardnier
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