Minority
Report - A Nova Lei,
de Steven Spielberg
Minority
report, EUA, 2002
1. O cinema americano, mais uma vez. Todo filme americano épico,
ou com pretensões a tal, tenta realizar o sonho americano de Intolerância:
os Estados Unidos são o país que, graças às
liberdades individuais, pode traçar diferentemente o lugar que
o destino lhe concedeu. Das quatro épocas retratadas no filme de
Griffith, o controle da sociedade sobre o indivíduo, baseado numa
falta de tolerância em relação aos costumes e às
condições de cada indivíduo, fazia com que não
só os personagens fossem condenados, mas toda uma civilização,
que desapareceria justamente por conta dessas características,
digamos, totalitárias (ou intolerantes, porque é daí
que o filme tira seu título). Sob esse aspecto, Minority Report
é apenas uma atualização do mesmo filme já
realizado mil vezes, apenas mudado de gênero (vira uma fábula
de ficção cinetífica). O dilema moral do filme não
é outro: sendo dado a mim um futuro criminoso, poderei eu mudá-lo
com bases no meu livre-arbítrio? Steven Spielberg é tão
americano quanto David Griffith, e responde da mesma forma: sim, é
possível mudar o destino inexorável.
2. Fritz Lang.
Minority Report traz em seu tecido, talvez, um longo debate com
Fritz Lang. Se esse debate existe, é menos com a transposição
futurista Metropolis (de que o próprio Lang fazia questão
de dizer que não gostava por seu romantismo óbvio e piegas)
do que com uma tradição de filmes que Lang mantinha como
seus favoritos em sua obra americana: Vive-se uma Só Vez,
Fúria, Os Corruptos, No Silêncio de uma
Cidade. Filmes que davam uma visão sombria da democracia, vista
como uma rede de pessoas passivas que tinham como distração
única culpabilizar personagens capazes de fazer o que eles próprios
gostariam, mas seriam incapazes. Minority Report começa dando essa
aparência: a cidade é Washington, daqui a cinqüenta
anos, e um novo sistema contra o crime, baseado na leitura antecipada
que três médiuns fazem de futuros crimes, permite que a taxa
de crimes na cidade seja reduzida para o zero absoluto. A prática,
porém, conduz a dilemas éticos que não são
sem importância (como, aliás, a produção de
robôs para satisfazer aos desejos de humanos lidando com uma grande
perda em AI): como prender um sujeito baseado em seu comportamento
futuro, ou seja, como tirar a liberdade e julgar alguém que não
cometeu qualquer crime? Sejam quais forem as dúvidas trazidas pelo
método, é um dispositivo fabular que o liberta: três
médiums, filhos de ex-drogados, beirando a idade da pós-adolescência
e mergulhados numa estranha banheira cujo líquido que a preenche
serve de condutor para que suas visões sejam gravadas e depois
exibidas em telas e computadores de última geração
(sem dúvida, o atrativo visual mais forte do filme). Ao contrário
de Fritz Lang, entretanto, Spielberg apenas começa o filme apontando
para uma trapaça fundamental da sociedade, uma covardia inerente
a sua constituição. O final redime tudo, coloca todos os
"culpados" em seus lugares e aponta para uma rearticulação
da América justa, pura e honesta. Essa a que vai, como em Intolerância,
liderar o mundo com sua experiência particular de mundo, a liberdade
individual que transcende o destino. Mais uma vez, traição
de Lang, que em seu cinema sempre leva a questão do destino a suas
últimas conseqüências.
3. Mais uma vez,
a fábula. Novamente, é uma fábula que nos joga
na ficção cinetífica e nos entrega as projeções
futuras de mundo assim como as vê Steven Spielberg. Da mesma forma
que um robô se transforma em gente pela força do amor (e,
dessa forma, retira todo o questionamento de AI da relação
homem/máquina para uma antropomórfica implausibilidade que
seria a existência psicológica da máquina), aqui os
três médiuns seriam a garantia a priori de uma previsibilidade
absoluta do futuro, respaldada, claro, por uns barbarismos de roteiro
que só existem para fazer com que a história seja possível
(os quase-autômatos só são capazes de prever assassinatos,
mas não roubos, estupros ou crimes do gênero). Da mesma forma,
as previsões estranhamente se resumem às fronteiras da cidade
de Washington, outra façanha da qual aparentemente nem Chico Xavier
em seu quase meio século de experiência mediúnica
poderia se orgulhar. Esses médiuns, presas do destino e da covardia
social tal qual o robozinho de AI, só viram personagens de cinema
(ou seja, são problematizados enquanto pessoas e não autômatos)
apenas quando o filme assim deseja, ou seja, quando uma médium
em especial, Agatha (Samantha Morton), passa a sofrer com uma imagem em
particular que não lhe sai da cabeça. Enquanto o sistema
funciona, está tudo ótimo. A primeira seqüência
do filme mostra a excelência do policial John Anderton (ninguém
menos que Tom Cruise, o macho cindido de Eyes Wide Shut e redimido
em Vanilla Sky, à procura do heroísmo desejado),
que consegue coletar as imagens dos médiuns, por indução
descobrir o lugar em que o futuro assassino irá agir e pará-lo
exatamente no momento em que ele realizará o ato. Tudo funciona
à perfeição...
4. Eventualmente,
a realidade. ...até que a bolinha que dá nome ao próprio
assassino mostra escrito "John Anderton". Obviamente ele duvida,
acredita que é algum complô que um funcionário federal
deseja estabelecer afim de levar o projeto que quer expandir-se
para todos os Estados Unidos para o ralo. Como seria de se esperar,
John Anderton jamais, em nenhum momento, acredita que ele mesmo poderia
ser capaz de cometer um crime. Cegamente, então, ele foge de todos
os policiais que alguma vez foram comandados dele, numa cena futurista
de perseguição muito agitada (lembra, inclusive do ponto
de vista da gravidade e dos carros futuristas, a perseguição
em O Ataque dos Clones) em que o filme pede ao espectador que esqueça
um pouco o dilema moral do personagem principal para ater-se à
ação. A América, ser responsabilizada de cometer
um crime? Complô, só pode. Spielberg passa então a
evoluir seu filme como uma ficção paranóica à
maneira de Hitchcock (Intriga Internacional, Sabotador):
todos acham que eu sou culpado, mas eu sei que sou inocente, e devo fugir
para pode comprovar minha inocência. Essa procura de provas leva
o protagonista a um périplo interessante, onde conheceremos toda
a história da construção do modelo dos médiuns,
e inclusive algo que poderia colocar em risco todo o sistema: o "minority
report", um relatório que mostra um dos médiuns tendo
projeções de futuro diferentes das dos outros, o que suporia
que o futuro dos acusados nem sempre poderia ser o do crime. Para que
o sistema fosse à prova de falhas, esses relatórios de minoridade
foram escondidos. Anderton, espécie de Ulisses contemporâneo,
deve então voltar à piscina dos médiuns para saber
se ele mesmo é vítima de um "minority report".
5. A casa da família.
O que dá mais a impressão de que Minority Report
não seja um filme clássico à Spielberg é a
falta da casa materna, esse lugar onde se pode crescer e viver em tranqüilidade.
Como sempre em seu cinema, a cidade grande é o local da confusão,
da sujeira e do crime, e a felicidade só pode existir numa casa
de suburb, ao pôr-do-sol e com um lindo jardim. A casa da família
existe, porém, e mesmo que ela não desempenhe um papel preponderante
em 95% do filme, o final certamente saberá compensar todos os instantes
em que essa casa "faltou". Anderton, se é um policial
perfeito, o é por suas deficiências sentimentais e familiares.
Perdeu o filho muito cedo, e por conta disso separou-se de sua mulher.
Minority Report é, à sua maneira, uma espécie
de Pickpocket de Spielberg: um longo caminho tortuoso e dolorido
que poderia terminar pela frase: "Que estranho caminho me fez unir-me
a você". Na casa da família, claro. Mas que essa família
"falte", que o protagonista não consiga encontrar seu
"lugar próprio", isso de alguma forma não é
problematizado, afora AI, desde Contatos Imediatos do Primeiro
Grau.
6. Melancolia de
Steven Spielberg. Minority Report, como AI, é
o filme de um homem melancólico. Menos pelo caminho desenvolvido
pelo filme, muito mais redentor do que AI, do que pela tematização
da falta, do objeto de amor sempre faltante. Há fissuras intransponíveis
nos dois personagens fundamentais: Tom Cruise é um drogado porque
não consegue se desfazer das imagens do filho e da esposa, Samantha
Morton teve sua mãe assassinada e essa iamgem retorna a ela infinitas
vezes. Curioso o fato de que o trauma está intimamente ligado à
imagem. Às imagens de Agatha exibidas na grande tela do computador
de Anderton, ou as da família de Anderton, exibidas em holograma
ou num vídeo em tamanho real. Steven Spielberg comentando com tristeza
o fato de que ele só consegue ser amado quando faz Jurassic
Park mas não quando faz AI ou O Resgate do Soldado
Ryan? Lamentando o destino do cinema comercial americano, destino
com o qual ele contribuiu, colocando o consumo de cinema e suas projeções
na mão de crianças e jovens de até 19 anos? Até
aqui ainda há poucos indícios para concluir...
7. Spielberg é
sempre Spielberg. Inútil tentar ser diferente. Os bem-intencionados
podem chamar de romantismo, mas a palavra sincera é impostura,
é embuste. John Anderton, enfim, descobre que ele não tem
nenhum "minority report", que estará fadado a assassinar
um homem que nem conhece. Mas a aliança divina ocorre: como que
guiado pela fé do agente federal que ele acreditava fosse seu algoz,
John Anderton realiza como um louco o percurso que a profecia predizia.
No momento final, contudo, surge uma voz: "ao contrário dos
outros, você viu seu futuro: você pode mudá-lo".
A coisa toda é filmada como um milagre. E, de fato, é: se
existe previsibilidade de um futuro (como a fábula do filme prega),
essa previsibilidade já leva em conta todos os encontros que o
personagem terá desde o momento da previsão até o
ato do assassinato, inclusive, naturalmente, a visão do próprio
futuro. Deus ex machina temporal, crença na liberdade humana (?),
pode-se dizer o que se quiser, mas o embuste lógico só é
superado pelo significado fílmico do acontecimento: predestinado,
inocente útil, recipiente de todas as virtudes (talvez até
um avatar do mito de Fausto), John Anderton sairá do flerte com
o diabo para um novo contrato com Deus, um contrato que lhe garantirá
novamente uma casa (a família restaurada), um futuro no qual acreditar
(a "banda podre" é detida, o sistema duvidoso é
desfeito) e sua própria vida, como predestinado, de volta: ele
é o criminoso que conseguiu voltar atrás.
8. Ser criança
ou ser adulto. Steven Spielberg fez alguns dos melhores filmes de
sua época quando tratava crianças como se fossem adultos.
Desde A Lista de Schindler, mudou seu escopo. Quer falar para adultos.
Nada de errado nisso. Mas a equação, de alguma forma, parece
ter mudado. Passou a tratar sistematicamente adultos como crianças.
Daí as reduções de praxe que seu cinema eventualmente
realiza, como expressar a maldade nazista com um suboficial atirando num
garotinho pelas costas por ter limpado mal sua banheira, ou nos identificar
com um robozinho mal-programado que se transforma numa criança
abandonada (operando todas as reduções possíveis
da pesquisa moral instituída no início do filme). O curioso
é que, tanto em Minority Report quanto em AI, estamos
diante de dois domínios que estão a meio caminho entre a
ficção verossímil e a fábula pura. Se a verossimilhança
serve para fazer o comentário social (e parece que Spielberg mais
do que nunca está interessado em intervir nos debates de sua comunidade:
sob esse aspecto, a crítica do excesso do controle de segurança,
Minority Report tem seus lances mais fortes), a fábula lhe
dá a liberdade de ser acessível com o espectador e de evoluir
seus próprios temas, em alguma medida fantasiosos, melosos e definitivamente
autocomplacentes, onde a todo excesso melodramático, a todo sentimentalismo
um pouco fácil demais corresponde uma mesma quantidade de benevolência
e samaritanismo que pretende justificar o patético em nome de uma
mensagem salvadora. Em Minority Report, o embate filosófico
entre livre arbítrio e destino ser resolvido de forma tão
pueril é a mostra definitiva de que Spielberg continua em plena
forma no seu projeto atual: misturar temas relevantes na história
americana (ao passado ou ao futuro) com sua visão de mundo um tanto
limitada, do ponto de vista de sua própria casa de família,
ou seja, da janela de uma adorável cidadezinha americana,
abrindo inequivocamente para um horizonte carmesim.
Ruy
Gardnier
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