Meninos Não Choram,
de Kimberly Pierce


Boys Don't Cry, EUA, 1999

Quem Não Chora

Uma cena que passa quase despercebida em Boys don’t cry serve muito bem para dizer a que na verdade o filme veio. Por trás de todo um certo clima de biografia naturalista, de filme de jovem "bê", estilo que foi consagrado pelo estranho Gus Van Sant (que nunca teve muito a dizer), com a óbvia canção do The Cure tocando, algo se revela. Trata-se de, em todos os sentidos, uma cena "no meio". É no meio da primeira parte do filme, no meio de outras ocorrências, no meio do nada. A imagem parece mesmo não querer dizer nada, mas é assim mesmo, sutilmente, meio dissimulada, que a cena se coloca em um púlpito para discursar e a dizer muito.

A cena é a em que o grupo de amigos que acolhe o andarilho Brandon (que sabemos ser na verdade Brenda) está reunido na casa de Candance, a estranha amiga que foi a chave para a conexão entre "o rapaz" e o grupo e que será importantíssima para o desenrolar da trama. Ali, no meio da conversa, sutilmente, o ex-presidiário John está com a filhinha no colo. A menina é a imagem tradicional do angelicalismo: pequenina, lourinha, inocente, com voz infantil e doce.

Com a garotinha no colo, John conversa com os amigos. O centro das atenções é Brandon. Todos falam dele, falam com ele. Um em um canto, bebe; outros, vêem tevê; a maioria conversa. No meio disso tudo, um grito quebra a rotina e explode para revelar um poder avassalador na discussão que o filme propõe (meio que em segredo): "merda, menina! Ela mijou no meu colo!".

O que há de brilhante nessa cena é que ela é como uma pinta amarela nas costas de um rinoceronte correndo. No meio do quão gritante a trama do filme é, a história de Brendon/Brenda, seu amor "impossível" por Lana, a questão da "síndrome de ambigüidade sexual" de Brenda, a sutil ocorrência da pedofilia familiar ali colocada, quase imperceptível, mostra que o debate do filme é bem maior, que é a sexualidade de uma maneira geral e sua leitura como fenômeno social.

Isso porque todas as relações do filme são de caráter sexual. A experiência de estímulo sexual do pai com a filhinha revela uma crítica a essa intermediação em todas as relações, revela uma crítica a sociedade (americana sim, mas, mais que isso, de todos os lugares na atualidade). É uma cena que poderia acontecer em qualquer aniversário de criança em que uma menininha imitasse as dançarinas do grupo É o Tchan "para o papai", como já nos cansamos de ver.

Ora, o filme funciona um pouco como braço armado, como linha de frente de uma "história da sexualidade" (de Foucault), a considerar que a maneira como se instituiu uma lógica da socialização baseada na sexualidade, nos impôs uma série de vazios, diante dos quais os papéis sexuais não sabem se colocar. Nesse sentido, a impossibilidade do amor dos dois (estranhamente produzido - o amor - por uma imensa carga de atração heterossexual), tanto quando a estranha posição de Candance, quanto, sobretudo mesmo a cena da menininha, servem para revelar essa impossibilidade.

Por isso Boys don’t cry é um filme importante. Mas é também um filme bom. Nos Estados Unidos, filme com fotografia ruim é filme intelectual. Assim foi que Gus Van Sant se fez e assim foi que tantos cineastas "independentes" se fizeram: pegaram uma câmera 16mm ou mesmo uma película inferior de 35mm e fizeram um filme para serem pensadores, estarem além da fotografia.

Mas Kimberly Peirce não é Van Sant. Tem algo a dizer. Tal como um filme do dogma 95, Boys don’t cry está efetivamente além da fotografia. É um filme que vence não pelo que aparece na tela, mas pelo que não aparece, pelo seu subtexto. As interpretações de Hilary Swank e de todo o resto do elenco, investidas de um naturalismo estrito, servem muito bem a esse serviço. Apesar de ser um papel para Oscar, não se pode censurar dar um prêmio à menina, pelo menos o filme dá coerência à boa interpretação. Isso porque ele exige dos atores exatamente isto: que eles digam com o que não estão dizendo.

Talvez a maior prova da inteligência do roteiro seja a cena final. A corrida de Lana para a casa de Candance, desesperada, temendo por sua vida, quando deveria temer pela de Brendon (haviam acabado de combinar uma fuga e logo depois ela desiste, o que torna a confusão de papéis mais ainda interessante). Depois, quando todos vão embora, quando ela é encontrada, sem poder ver um corpo, deitada sobre um outro, todos os papéis definitivamente se confundem. Ela não chora por um, chora por outro.

Alexandre Werneck