Memórias
Póstumas,
de André Klotzel
Memórias
Póstumas, Brasil, 2001
Àqueles que gostam sempre de receber a notícia ruim antes
da boa, sugiro aqui que o leitor pule esse parágrafo para lê-lo
apenas depois da leitura do segundo. Se o leitor é de boa índole
e prefere que se conheça o lado bom antes do mau, que continue
o traço das linhas. Pois Memórias Póstumas é
feliz naquilo que se propõe ser: uma tentativa, didática
certamente, de transpor algumas das invenções do romance
Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado
de Assis, para o cinema, e criar no público o interesse vivo pela
obra literária do mais aclamado escritor de nossa literatura. Isso,
decididamente, o terceiro filme de André Klotzel realiza até
seu fim, e consegue-o com uma qualidade e uma firmeza impressionantes.
Uma coisa, entretanto,
seria demais pedir ao filme: que ele colocasse o livro de Machado de Assis
em crise, que testasse seus limites e tentasse criar vida independentemente
dele. Memórias Póstumas, o filme, submete-se ao livro,
fica intencionalmente abaixo dele, e assim reduz certamente suas possibilidades
como obra. Abaixo dele, como se coloca, só pode ver o livro a adaptar
de forma quase servil, imbuído de inúmeros pressupostos,
jamais penetrando nele e extraindo uma relação mais íntima.
É mais uma relação de amizade social, de respeito,
do que uma visão apaixonada, como a de Fernando Cony Campos em
Viagem ao Fim do Mundo.
Memórias
Póstumas tenta acompanhar seu correlato literário por
tudo aquilo que a tradição mais louva nele: a tão
propalada metalinguagem, os desvios da narrativa para trazer pequenos
relatos que não dizem respeito necessariamente à história
relatada, o fato de o livro ser narrado por um morto, a fina ironia em
relação aos personagens... Uma coisa a se dizer a favor
do filme é que ele é feliz em escolher determinados capítulos
aparentemente pouco importantes na história, mas que são
bastante importantes do ponto de vista do autor. A esse respeito, a cena
da alucinação, o célebre momento do hipopótamo,
mesmo que seja a cena mais infeliz do ponto de vista da realização
(o cenário, infeliz, beira o ridículo), vale como exemplo
da não-continuidade da escrita de Machado de Assis e mostra os
momentos absurdos caros à pena do escritor. Entre alguns momentos
que poderiam ser lembrados – já que o autor expôs-se à
tarefa de trazer a grandeza do livro ao cinema –, poderíamos citar
o célebre "Diálogo de Adão e Eva" ou a bizarra passagem
onde Brás Cubas toma conhecimento do nome de Virgília. Mas
o filme alcança várias vezes momentos interessantes, senão
hilários.
Mas chega de comparações.
Como filme, Memórias Póstumas funciona para quem
tem interesse e até para quem não pretende ler o livro.
Tem uma personalidade, uma personalidade forte de quem já assinou
A Marvada Carne, e é um veículo interessante e lúdico
pela interface que abre com o público colegial – até então,
os filmes que se queriam didáticos eram incrivelmente desinteressantes
para o público jovem (Policarpo Quaresma) ou abusavam da
bufonaria e se tornavam pouco interessantes na sala de aula (Carlota
Joaquina). O filme de André Klotzel sabe fazer um personagem-narrador-morto
curioso, bonachão, simpático, interpretado com talento por
Reginaldo Faria, e que vai penetrando pelas cenas, tal qual o narrador
no livro, observando os fatos, comentando-os enquanto eles tomam lugar,
parando o tempo e rindo-se deles. Os atores estão todos adequados,
em interpretações intencionalmente beirando o teatral (um
naturalismo não serviria na adaptação do livro),
à exceção de Sônia Braga, que interpreta a
prostituta Marcela, mas que se encontra perdida no papel, quase imóvel,
sem o fulgor e a cativação do personagem original. Aliás,
Memórias Póstumas começa esquisito, sem saber
inicialmente onde situar o espectador, jogando para todos os lados. Até
que, aos poucos, consegue achar uma cara, e vai crescendo progressivamente,
até a seqüência do delírio antes da morte, provavelmente
a mais interessante do filme.
Ao fazer seu Memórias
Póstumas, André Klotzel não parece ter tido a
vontade de dar mais um passo a sua carreira, de expandir os limites de
sua arte ou mesmo persistir no caminho de seus filmes anteriores. Quis,
como bom artesão, realizar um filme que prestasse uma homenagem
a um grande livro. Considerado o objetivo, pode-se dizer que o realizador
cumpriu sua tarefa e fez um filme honesto, criativo e de um charme esquisito,
tão mais charmoso quanto esquisito. Melhor assim.
Ruy Gardnier
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